Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 5/2019

ELIhttps://data.dre.pt/eli/acstj/5/2019/09/26/p/dre
Data de publicação26 Setembro 2019
SeçãoSerie I
ÓrgãoSupremo Tribunal de Justiça

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 5/2019

Sumário: «O despacho genérico ou tabelar de admissão de impugnação de decisão da autoridade administrativa, proferido ao abrigo do disposto no artigo 63.º, n.º 1, do Regime Geral das Contra-Ordenações, não adquire força de caso julgado formal.»

Processo n.º 6941/16.6T8GMR.G1-A.S1

Acordam, em conferência, no pleno das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça:

I

1 - Nos autos em referência, o arguido, Filipe Abraão Guimarães Machado, interpôs recurso extraordinário de fixação de jurisprudência, do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães proferido no processo em referência, a 23 de Outubro de 2017, do passo em que decidiu que o despacho do juiz de primeira instância que, em processo de contra-ordenação, aceitou a impugnação judicial de decisão administrativa, não tem força de caso julgado, por ser meramente tabelar, donde a questão relativa à tempestividade da interposição do recurso poder ser novamente apreciada pelo tribunal.

2 - O recorrente faz tese de que tal decisão está em oposição com aquela, levada pelo Tribunal da Relação do Porto, em acórdão de 11 de Outubro de 1999, proferido no recurso 40642, do passo em que decidiu que, com o trânsito em julgado do despacho que designou data para a audiência de julgamento, ficou precludida a possibilidade de, posteriormente, em primeira ou na instância de recurso, se decidir pela existência da questão prévia relativa à extemporaneidade da impugnação judicial.

3 - Precedendo conferência, este Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 2 de Maio de 2018, decidiu o prosseguimento do recurso, dando por verificada a oposição de julgados.

4 - Cumprido o disposto no artigo 442.º n.º 1, do Código de Processo Penal (CPP), o arguido recorrente e o Ministério Público recorrido, apresentaram alegações.

5 - O recorrente extrai da respectiva motivação as seguintes conclusões:

«1.ª Nos termos dos artigos 63.º e 65.º do DL n.º 433/82 de 27/10, o juiz deve, ao receber o recurso, declarar se este é feito dentro do prazo e marcar a audiência, se o aceitar. Ao proferir despacho a marcar data para a audiência de julgamento, aceitou o recurso, considerando-o dentro do prazo legal e notifica-o ao arguido.

2.ª Ao ter proferido este despacho, fica precludida a possibilidade de posteriormente - seja na 1.ª instância, seja em instância de recurso - se decidir pela existência da questão prévia da extemporaneidade do recurso de impugnação judicial.

3.ª Se assim não for, afeta-se, desproporcionadamente, o direito de defesa do recorrente na dimensão do direito ao recurso garantido pelo artigo 32.º, n.º 1 da Constituição, colidindo ainda com os princípios da legalidade, da unidade do sistema e do acesso ao direito; e

4.ª Viola-se o princípio da tutela jurisdicional efetiva dos direitos ou interesses legalmente protegidos; o princípio das garantias de defesa do arguido, na dimensão do direito ao recurso garantido pelo artigo 32.º, n.º 1 da Constituição, violando ainda os princípios da legalidade, da unidade do sistema e do acesso ao direito.

5.º Por outro lado, proferido o despacho a receber o recurso e a marcar audiência, nos termos dos artigos 63.º e 65.º do DL n.º 433/82 de 27/10, não pode, depois, o juiz proferir despacho a rejeitá-lo, pois o seu poder de cognição ficou esgotado com a prolação de despacho de recebimento.

6.ª Ao proferir tal despacho, esgota-se o poder jurisdicional do Tribunal quanto às questões ali apreciadas.

7.ª A partir do momento em que foi recebido o recurso e marcada data para audiência de julgamento, nos termos do disposto nos artigos 63.º e 65.º do DL n.º 433/82 de 27/10, não pode o mesmo juiz ou juiz diferente, decidir rejeitar a acusação em momento processual posterior, sob pena, de preterição da certeza, da segurança, da estabilidade e da confiança inerentes ao exercício do poder jurisdicional, constitucionalmente reconhecidas.

8.ª Se o juiz não rejeitou o recurso naquele despacho e, pelo contrário, não só o recebeu como até designou data para a audiência de julgamento (mesmo após a promoção do Ministério Público em que apela à sua extemporaneidade) o vício da extemporaneidade invocado deixa de relevar enquanto fundamento de rejeição do mesmo, tomada tal rejeição como consequência atípica ou sui generis, apenas verificável naquele momento processual.

9.º A este entendimento está também subjacente o respeito quer pelos princípios gerais que regem a Administração Pública, designadamente o princípio da tutela jurisdicional efetiva dos direitos ou interesses legalmente protegidos, através da impugnação judicial de qualquer ato administrativo, quer pelo princípio das garantias de defesa do arguido, a que estão sujeitos os processos de contra-ordenação.

Termos em que deve ser proferido acórdão para uniformização de jurisprudência fixando-se interpretação no sentido de que:

"I - Nos termos dos artigos 63.º e 65.º do DL n.º 433/82 de 27/10, o juiz deve, ao receber o recurso, declarar se este é feito dentro do prazo e marcar a audiência, se o aceitar.

II - Tendo-se recebido o recurso e marcado data para a audiência de julgamento, é porque aceitou o recurso, considerando-o dentro do prazo legal.

III - Fica assim precludida a possibilidade de posteriormente - seja na 1.ª instância, seja em instância de recurso - se decidir pela existência da questão prévia da extemporaneidade do recurso de impugnação judicial."»

6 - O Ministério Público, recorrido, extrai da respectiva minuta as seguintes conclusões:

«1 - O processo das contra-ordenações obedece a regras próprias e daí resultam especificidades próprias, como seja a característica de se iniciar como um puro processo administrativo, com a inerente instrução e culminando na decisão da autoridade administrativa, a qual, não sendo impugnada, assume carácter final, definitivo mas, sendo impugnada, reveste a vertente de verdadeiro processo judicial, tornando-se a decisão administrativa numa decisão-acusação.

2 - Por isso, o direito contra-ordenacional não se confunde com o direito processual penal, o qual apresenta carácter subsidiário, nos termos do disposto no artigo 41.º do RGCO, só sendo de recorrer às suas normas quando não se encontre resposta adequada no âmbito do processo contra-ordenacional.

3 - A impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa não é um verdadeiro recurso, já que tem o efeito de atribuir a um Tribunal a competência para decidir da causa, retirando-a da esfera administrativa. Ou seja, a impugnação não vai ser decidida por outra entidade hierarquicamente superior à recorrida, mas por um órgão independente e imparcial, pertencente a uma outra jurisdição.

4 - Também não é uma verdadeira acusação, dado que o ato de acusação tem como pressuposto uma iniciativa de impugnação do arguido ou seu defensor, o exame preliminar do juiz incide sobre a impugnação e não sobre a acusação e vigora também neste âmbito o princípio da proibição da reformatio in pejus.

5 - Assim, em processo contra-ordenacional, depois do Ministério Publico tornar presentes os autos ao juiz, valendo aqueles como acusação, tudo decorre de acordo, com as normas previstas no R.G.C.O. e subsidiariamente com as do Código de Processo Penal, tendo em conta a natureza complexa desta fase do processo, designadamente a dualidade recurso/acusação.

6 - O caso julgado enquanto pressuposto processual, conforma um efeito negativo que consiste em impedir qualquer novo julgamento da mesma questão e,

7 - o caso julgado formal respeita a decisões proferidas no processo, no sentido de determinação da estabilidade instrumental do processo em relação à finalidade a que está adstrito, tornando-a insusceptível de alteração por meio de qualquer recurso como efeito da decisão no próprio processo em que é proferida, conduzindo ao esgotamento do poder jurisdicional do juiz e permitindo a sua imediata execução

8 - No regime geral das contra-ordenações verifica-se que, relativamente à questão do caso julgado formal, não existe norma expressa que trate desta matéria, motivo pelo qual há que aplicar subsidariamente o Código de Processo Penal [artigo 41.º do RGCO do C.P.P.]

9 - Da leitura do disposto nos artigos 331.º e 338.º do CPP e importando a respectiva disciplina e princípios, com as devidas adaptações, para o processo contra-ordenacional, é de concluir que o decidido pelo tribunal quanto a tempestividade do recurso não o impede de, posteriormente, se pronunciar expressamente sobre essa questão, a menos que sobre ela tenha-se pronunciado fundamentadamente e não se verifique alteração superveniente.

10 - É que só tem efeito de caso julgado formal a decisão que conheça de questões concretas e não aquela que se limita a declarar, genericamente, a verificação dos pressupostos processuais e a regularidade da instância.

11 - O despacho de admissão do recurso da impugnação judicial é meramente tabelar, limitando-se, na parte em apreço, a declarar a tempestividade do requerimento, pressupondo-a em termos genéricos, razão pela qual não deverá ter a virtualidade de conduzir à formação de caso julgado formal sobre essa questão, podendo esta ser posteriormente suscitada perante o tribunal, que poderá livremente alterar a decisão anteriormente proferida.

12 - Neste sentido se decidiu no acórdão de fixação de jurisprudência n.º 2/95, de 16 de Maio de 1995 que se pronunciou quanto a questão de saber se o despacho sobre a legitimidade do Ministério Público, proferido em termos genéricos, ao abrigo do artigo 311.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, constitui caso julgado e cuja fundamentação aí aduzida se nos afigura ser válida para a situação aqui em apreço e, do qual consta: "A decisão judicial genérica transitada e proferida ao abrigo do artigo 311.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, sobre a legitimidade do Ministério Público, não tem o valor de caso julgado formal, podendo até à decisão final ser dela tomado conhecimento.

Propõe-se pois, que o conflito de jurisprudência existente entre o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de...

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