Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 4/2019

ELIhttps://data.dre.pt/eli/acstj/4/2019/07/25/p/dre
Data de publicação25 Julho 2019
SectionSerie I
ÓrgãoSupremo Tribunal de Justiça

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 4/2019

Sumário: Na graduação de créditos em insolvência, apenas tem a qualidade de consumidor, para os efeitos do disposto no Acórdão n.º 4 de 2014 do Supremo Tribunal de Justiça, o promitente-comprador que destina o imóvel, objeto de traditio, a uso particular, ou seja, não o compra para revenda nem o afeta a uma atividade profissional ou lucrativa.

Proc. n.º 2384/08.3TBSTS-D.P1.S1-A

Recurso para Uniformização de Jurisprudência

Recorrente: Caixa Geral de Depósitos, S. A.

Recorridos: José Torres Nunes da Costa, Fernando Manuel da Costa Marques, António Tavares Gouveia, Manuel Custódio Carneiro da Costa, Armanda Maria Vicente de Almeida e Maria Teresa Pereira Esteves.

Relatora: Maria Olinda Garcia (6.ª Secção)

I. RELATÓRIO

1 - Por apenso aos autos da insolvência de "M. Fonseca & Filhos, Lda.", correu o processo de graduação de créditos, o qual, no que ao histórico do presente processo interessa, reconheceu e graduou os seguintes créditos:

- Crédito de (euro)110 000,00 de José Tadeu Machado Ferreira e mulher Alberta Maria da Silva Pereira(1), garantido por direito de retenção, sobre duas frações autónomas, para habitação e garagem individual, designadas pelas letras BJ e U do prédio urbano em construção, sito na Rua Ferreira de Lemos, em Santo Tirso, descrito na Conservatória do Registo Predial de Santo Tirso sob o n.º 2866;

- Crédito de (euro) 380 733,98 de José Torres Nunes da Costa, Fernando Manuel da Costa Marques, Dr. António Tavares Gouveia, Dr. Manuel Custódio Carneiro da Costa, Dra. Armanda Maria Vicente de Almeida e Dra. Maria Teresa Pereira Esteves(2), garantido por direito de retenção, sobre as frações D e E do prédio constituído em propriedade horizontal, composto de rés-do-chão e cave, com a área aproximada de 800 m2, sito na Rua Nova da Telheira, n.º 212, em Santo Tirso, com a inscrição matricial n.º 5193, descrito na Conservatória do Registo Predial de Santo Tirso, sob o n.º 1410.

2 - Os referidos créditos foram graduados antes dos créditos garantidos com hipoteca existentes sobre os mesmos imóveis, por ter sido reconhecido aos seus titulares o direito de retenção previsto no art.755.º, n.º 1, alínea f), do Código Civil, aplicável nos termos do Acórdão do STJ n.º 4/2014 (revista ampliada), publicado no DR, 1.ª série, de 19.05.2014.

3 - A sentença de graduação de créditos foi alvo de recurso de apelação, para o Tribunal da Relação do Porto, interposto pelos credores hipotecários Caixa Geral de Depósitos (contra a graduação dos créditos de José Torres e Outros) e Novo Banco (contra a graduação de créditos de José Tadeu e mulher).

4 - O Tribunal da Relação do Porto, revogando a sentença de graduação de créditos, qualificou os créditos dos Recorridos como créditos comuns e não lhes reconheceu o direito de retenção.

5 - Contra o acórdão do Tribunal da Relação do Porto foi interposto recurso de revista por José Torres e Outros (tendo como Recorrida a Caixa Geral de Depósitos) e por José Tadeu e mulher (tendo como Recorrido o Novo Banco).

6 - A Caixa Geral de Depósitos apresentou contra-alegações. O Novo Banco não contra-alegou.

7 - Por acórdão de 24.10.2017, o Supremo Tribunal de Justiça concedeu a revista, entendendo que os créditos estavam garantidos com o direito de retenção e considerando os respetivos titulares como "consumidores" para efeitos do Acórdão n.º 4/2014.

8 - Em 15.11.2017, a Caixa Geral de Depósitos interpôs recurso extraordinário, para o Pleno das Secções Cíveis, pedindo a revogação daquele acórdão e a uniformização de jurisprudência, com base no artigo 688.º e seguintes do Código de Processo Civil.

Nas suas alegações apresentou as conclusões que se transcrevem:

1 - «Vem o presente recurso, para o pleno das secções cíveis com vista à uniformização de jurisprudência, do acórdão que concedeu a revista interposta por José Torres Nunes da Costa, Fernando Manuel da Costa Marques, António Tavares Gouveia, Manuel Custódio Carneiro da Costa, Armanda Maria Vicente de Almeida e Maria Teresa Pereira Esteves.

2 - O acórdão recorrido, ao considerar como consumidores, para efeitos de aplicação do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 4/2014, os credores José Torres Nunes da Costa, Fernando Manuel da Costa Marques, António Tavares Gouveia, Manuel Custódio Carneiro da Costa, Armanda Maria Vicente de Almeida e Maria Teresa Pereira Esteves, que celebraram contrato-promessa de compra e venda de duas fracções autónomas, com o propósito de aí instalarem uma clínica - o que concretizaram -, sendo que, a partir da celebração do mencionado contrato, das fracções em causa tomaram posse e nelas passaram a efectuar diversas consultas, tratamentos e exames médicos, encontra-se em frontal oposição com, pelo menos, outros dois acórdãos deste Supremo Tribunal de Justiça, a saber, acórdão de 13.07.2017, proferido no âmbito do processo n.º 1594/14.9TJVNF.2.G1.S2, e acórdão de 14.02.2017, proferido no âmbito do processo n.º 427/12.5TBFAF-F.G1.S1, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.

3 - Quanto à problemática que, para os efeitos pretendidos, envolve o conceito de consumidor, o acórdão recorrido, concedendo a revista interposta pelos credores ora recorridos, entendeu que "não será consumidor quem compra (ou promete comprar) com escopo de revenda" e que "é consumidor o não profissional do ramo, isto é, aquele cuja actividade profissional não consiste propriamente na compra e venda de imóveis ou na compra visando outro escopo lucrativo que terá por objecto imediato o prédio ou a fracção (por exemplo, para arrendamento) e que vai ser, assim, o utilizador final do bem.

4 - Por seu turno, no acórdão fundamento de 13.07.2017, considerou-se ser "consumidor aquele que adquirir bens ou serviços para satisfação de necessidades pessoais e familiares (uso privado) e para outros fins que não se integrem numa actividade económica levada a cabo de forma continuada, regular e estável".

5 - No mesmo sentido, no acórdão fundamento de 14.02.2017, entendeu-se que "Não reveste tal conceito (de consumidor) aquele que celebra como promitente-comprador um contrato promessa de aquisição de loja que destina a nela instalar uma loja comercial que efetivamente instala, constituindo, para o efeito, uma sociedade comercial", nem aquele que "celebra contrato promessa, como promitente-comprador de três frações prediais, sendo duas lojas comercias e a restante um aparcamento na cave de apoio, lojas essas que o referido credor destina, uma, a nela instalar um estabelecimento comercial que efetivamente veio a instalar, por sua conta, e a outra dá de arrendamento a uma instituição bancária, recebendo as respetivas rendas".

6 - Ora, se no aludido AUJ n.º 4/2014 se uniformizou jurisprudência no sentido de que "No âmbito da graduação de créditos em insolvência o consumidor promitente-comprador em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção nos termos do estatuído no artigo 755.º n.º 1 alínea f) do Código Civil" - negrito e sublinhado nossos - , dúvidas não há de que o próprio conceito de consumidor não foi objecto de uniformização.

7 - E assim, temos que no acórdão recorrido se considera serem consumidores os credores que destinaram (e para esse efeito prometeram comprar) as fracções objecto do contrato-promessa por si celebrado ao exercício das suas actividades profissionais, ao passo que nos acórdãos fundamentos entendeu-se o seu contrário, ou seja, que não revestem a qualidade de consumidores.

8 - Assim sendo, e atendendo a que nos acórdãos aqui em apreço se discute a mesma questão fundamental de direito, no domínio da mesma legislação, encontrando-se as respectivas decisões em oposição clara e directa, sem que tenha sido fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça jurisprudência uniforme sobre a presente vexatia quaestio, deverá o presente recurso ser admitido, nos termos do disposto no art. 688.º do CPC.

9 - Com efeito, a decisão recorrida, ao aplicar um conceito absolutamente restrito de consumidor, no sentido de que apenas não o é o quem adquire o bem no exercício da sua actividade profissional de comerciante de imóveis, acha-se em contradição com o que, segundo cremos, vem sendo o entendimento maioritário deste Supremo Tribunal de Justiça, além de que (e fundamentalmente) não encontra suporte no nosso ordenamento jurídico.

Vejamos:

10 - A qualidade de consumidor está definida no n.º 1 do art. 2.º da Lei n.º 24/96 de 31 de Julho, nos termos do qual "Considera-se consumidor todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios".

11 - Por seu turno, no AUJ n.º 4/2014 expôs-se que "[...]A opção legislativa no conflito entre credores hipotecários e os particulares consumidores, concedendo-lhes o "direito de retenção" teve e continua a ter uma razão fundamental: a proteção destes últimos no mercado da habitação; na verdade, constituem a parte mais débil que por via de regra investem no imóvel as suas poupanças e contraem uma dívida por largos anos, estando muito menos protegidos do que o credor hipotecário (normalmente a banca) que dispõe regra geral de aconselhamento económico, jurídico e logístico que lhe permite prever com maior segurança os riscos que corre caso por caso e ponderar uma prudente seletividade na concessão de crédito.

12 - Já no relatório do DL 379/86 de 11 de Novembro, na sua nota 4, consignou-se que: "O problema só levanta particulares motivos de reflexão precisamente em face da realidade que levou a conceder essa garantia: a da promessa de venda de edifícios ou de fracções autónomas destes, sobretudo destinados a habitação, por empresas construtoras, que, via de regra, recorrem a empréstimos, máxime tomados de instituições de crédito. [...] Neste conflito de interesses, afigura-se...

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