Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 3/2011, de 25 de Janeiro de 2011

Acórdáo do Tribunal Constitucional n. 3/2011

Processo n. 561/10

Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional:

Relatório

O provedor de justiça, ao abrigo do disposto no artigo 281., n. 2, alínea d), da Constituiçáo da República Portuguesa (CRP), deduziu pedido de fiscalizaçáo abstracta sucessiva, requerendo a declaraçáo de inconstitucionali-dade, com força obrigatória geral, das normas que constam do artigo 9. -A, n.os 1 e 2, do regulamento n. 52 -A/2005, de 1 de Agosto (Regulamento Nacional de Estágio da Ordem dos Advogados), na redacçáo que lhe foi dada pela deliberaçáo n. 3333 -A/2009, de 16 de Dezembro, do Conselho Geral da Ordem dos Advogados.

Invocou, em resumo, os seguintes fundamentos:

O artigo 9. -A do Regulamento Nacional de Estágio da Ordem dos Advogados, aditado pela deliberaçáo n. 3333 -A/2009, de 16 de Dezembro, do Conselho Geral da Ordem dos Advogados, criou um novo exame nacional de acesso ao estágio, que consiste na realizaçáo de uma prova escrita que incide sobre as disciplinas jurídicas que estáo previamente definidas no referido Regulamento.

Deveráo submeter -se a tal exame os candidatos que tenham obtido a respectiva licenciatura em Direito após o Processo de Bolonha, dele ficando excluídos os candidatos que sejam detentores do grau de mestre em Direito e aqueles que tenham obtido a licenciatura antes do Processo de Bolonha.

A introduçáo de um exame nacional de acesso ao estágio é uma medida absolutamente inovatória face ao quadro legal referente à inscriçáo na Ordem dos Advogados e, concomitantemente, no acesso à profissáo de advogado.

De facto, o artigo 187. do Estatuto da Ordem dos Advogados, determina que «podem requerer a sua inscriçáo como advogados estagiários os licenciados em Direito por cursos universitários nacionais ou estrangeiros oficialmente reconhecidos ou equiparados».

Por outro lado, o Estatuto elenca, no respectivo artigo 181., n. 1, alíneas a) a e), as restriçóes ao direito de inscriçáo passíveis de serem aplicadas e regulamentadas pela Ordem, náo podendo, designadamente, ser inscritos: os que náo possuam idoneidade moral para o exercício da profissáo, os que náo estejam no pleno gozo dos direitos civis, os declarados incapazes de administrar as suas pessoas e bens por sentença transitada em julgado, os que estejam em situaçáo de incompatibilidade ou inibiçáo do exercício da advocacia, bem como os magistrados e funcionários que, mediante processo disciplinar, hajam sido demitidos, aposentados ou colocados na inactividade por falta de idoneidade moral.

Comprovados os demais requisitos e atestada a posse do grau de licenciado em Direito, náo prevê o Estatuto da Ordem, em momento prévio e condicionante da inscriçáo na referida associaçáo pública, qualquer outra prova de conhecimentos científicos, que se presumiráo adquiridos.

Deste modo, a imposiçáo da aprovaçáo no exame a que alude o artigo 9. -A do Regulamento como condiçáo para que o candidato licenciado em Direito possa requerer a sua inscriçáo na Ordem dos Advogados, aparece como uma medida inovatória, adicionalmente restritiva do acesso à

formaçáo (na Ordem dos Advogados), logo de acesso ao exercício da profissáo (de advogado), estando, como se sabe, este dependente daquele.

Náo cabe aqui discutir o eventual mérito das razóes invocadas pela Ordem para a introduçáo do exame de acesso ao estágio em si mesmo e nos termos em que o fez.

O artigo 9. -A do Regulamento de Estágio foi aprovado, passe o pleonasmo, por mero regulamento, e, consequentemente, em violaçáo portanto da reserva de lei, imposta, desde logo, pelo artigo 18., n.os 2 e 3 da Constituiçáo.

De facto, e como se disse já, a circunstância de o licenciado em Direito estar dependente da aprovaçáo num exame para poder requerer a sua inscriçáo na Ordem dos Advogados constitui uma verdadeira restriçáo ao acesso à formaçáo da Ordem, única via que permite o acesso à profissáo de advogado.

Assim sendo, a introduçáo do referido exame de acesso constitui uma verdadeira restriçáo à liberdade de escolha de profissáo, garantida pelo artigo 47., n. 1, da Constituiçáo, que determina que «todos têm o direito de escolher livremente a profissáo ou o género de trabalho, salvas as restriçóes legais impostas pelo interesse colectivo ou inerentes à sua própria capacidade».

A liberdade de escolha de profissáo faz parte do elenco dos direitos, liberdades e garantias cuja restriçáo só pode, nos termos do artigo 18., n.os 2 e 3, do texto constitucional, ser operada por via de lei formal, isto é, lei da Assembleia da República ou decreto -lei do Governo.

Em anotaçáo precisamente ao artigo 47., n. 1, da Lei Fundamental, referem Jorge Miranda e Rui Medeiros (Constituiçáo Portuguesa Anotada, Coimbra 2005, p. 476): «A Constituiçáo expressamente admite, no n. 1, 'as restriçóes legais impostas pelo interesse colectivo ou inerentes à sua própria capacidade'. Quer dizer: a liber-dade de profissáo - a de escolha e, a fortiori, a de exercício - fica logo recortada no catálogo constitucional de direitos conexa com os dois postulados limitativos, com a consequente compressáo do seu conteúdo. As restriçóes têm de ser legais, náo podem ser instituídas por via regulamentária ou por acto administrativo».

Conforme referem Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituiçáo da República Portuguesa Anotada, I, Coimbra 2007, p. 658): «as ordens profissionais e figuras afins ('câmaras profissionais', etc.) náo podem estabelecer auto-nomamente restriçóes ao exercício profissional - as quais só podem ser definidas por lei (reserva de lei)».

Deste modo, desde logo se conclui que a restriçáo, por via regulamentar, concretamente pelas normas do artigo 9. -A, n.os 1 e 2, do Regulamento Nacional de Estágio, do direito em causa, traduz uma violaçáo do regime formal dos direitos, liberdades e garantias, designadamente a imposiçáo constitucional, ínsita nos n.os 2 e 3 do artigo 18. da Lei Fundamental, de que eventuais restriçóes se façam por lei em sentido formal.

Integrando a liberdade de escolha de profissáo o elenco dos direitos, liberdades e garantias a que se refere o artigo 165., n. 1, alínea b), da Constituiçáo, a restriçáo imposta pelas normas do artigo 9. -A do Regulamento deveria ter sido promovida por lei da Assembleia da República ou por decreto -lei por aquela autorizado.

Neste sentido, e analisando situaçáo idêntica, conclui -se, no Acórdáo do Tribunal Constitucional n. 347/92, que «a definiçáo de quem reúne as condiçóes legais para se inscrever (numa associaçáo pública profissional, no caso do Acórdáo a Câmara dos Solicitadores) inclui -se na reserva parlamentar, havendo, por isso, de constar de lei formal ou de decreto -lei do Governo, devidamente autorizado para o efeito».

Diga -se, ainda, que de acordo com abundante jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre a matéria, mesmo que se entendesse que a introduçáo do exame nacional de acesso ao estágio da Ordem dos Advogados náo constituiria uma verdadeira restriçáo da liberdade de escolha de profissáo, «a reserva legislativa parlamentar em matéria de direitos, liberdades e garantias, abrange 'tudo o que seja matéria legislativa, e náo apenas as restriçóes do direito em causa'» (Acórdáo n. 255/02, que cita o Acórdáo n. 128/00).

Desta forma, as normas em causa sáo inconstitucionais por violaçáo do artigo 165., n. 1, alínea b), da lei Fundamental.

Em resposta, o Conselho Geral da Ordem dos Advogados, representado pelo seu presidente, o bastonário, veio responder nos termos que, em síntese, se seguem:

O Regulamento Nacional de Estágio foi alterado pela deliberaçáo n. 3333 -A/2009, de 16 de Dezembro, do Conselho Geral, no sentido de criar um exame nacional de acesso ao estágio, nos termos do artigo 9. -A, n.os 1 e 2.

A norma que criou o exame de acesso ao estágio teve, nos termos da deliberaçáo que a aprovou, um objectivo claro de garantir a eficácia da formaçáo e a valorizaçáo profissional do estágio, associadas à dignidade funcional e ao prestígio social da profissáo de advogado.

A deliberaçáo esclarece ainda que com a instituiçáo do exame de acesso ao estágio se visou assegurar que «os licenciados que pretendem ingressar no estágio na Ordem possuam os conhecimentos jurídicos necessários à formaçáo profissional que iráo receber. Daí que a Ordem tenha o direito, que é simultaneamente um dever, de verificar previamente a preparaçáo científica de que sáo portadores esses candidatos à advocacia.

Este...

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