Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/2011, de 31 de Maio de 2011

SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/2011 Processo n.º 456 -08.3GAMMV — FJ Acordam no pleno das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça: 1 — António Fernandes Gomes Monteiro Fonseca inter- pôs recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, ao abrigo do artigo 437.º, n. os 1 e 4, do Código de Processo Penal, do Acórdão da Relação de Coimbra de 17 de Março de 2010 (processo n.º 456/08.3GAMMV -A.C1), que pro- nunciou o recorrente pela prática de um crime de dano, previsto e punido pelo artigo 212.º, n.º 1, do Código Penal, invocando as seguintes razões: No acórdão recorrido, estando em causa a aprecia- ção da legitimidade da assistente para exercer o direito de queixa relativamente à danificação pelo arguido de um bem (veículo automóvel), do qual era apenas mera detentora e não proprietária, decidiu -se que, estando a assistente «no gozo da coisa é directamente atingida no seu gozo, fruição e uso, pelo que deve poder defen- der esse seu direito, sem estar na dependência de uma eventual queixa da titular do registo de propriedade», e que «sendo a detentora do direito de gozo de que é possuidora, é titular do interesse juridicamente protegido no crime de dano», tendo por isso «legitimidade para apresentar a respectiva queixa». Esta decisão, por ter sido proferida em recurso pelo Tribunal da Relação de Coimbra, não admitia recurso ordinário, e transitou em julgado.

Porém, sobre a mesma questão de direito — legitimi- dade para apresentação de queixa no crime de dano — e no domínio da mesma legislação, a Relação de Coimbra decidiu em sentido oposto por Acórdão de 6 de Dezem- bro de 2006 (processo n.º 61/04.3TAFIG.C1), transitado em julgado (acórdão fundamento), considerando que, de acordo com o direito positivo vigente, a área de protecção da norma só inclui o proprietário, pelo que, em consequên- cia, o ofendido típico será o portador do concreto bem jurídico tutelado — o proprietário.

No entender do recorrente resulta manifesta a con- tradição entre os julgados, devendo ser declarada a oposição. 2 — Nos termos do artigo 437.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, a secção, por Acórdão de 17 de Novembro de 2010, julgou verificada a oposição de julgados, orde- nando o prosseguimento do recurso.

Foram notificados os sujeitos processuais interessa- dos — o recorrente e o Ministério Público — para os efei- tos do artigo 442.º, n.º 1, do mesmo Código.

O recorrente alegou, remetendo para os termos da mo- tivação que apresentou para fundamentar a interposição de recurso. 3 — O magistrado do Ministério Público apresentou alegações, que termina com a formulação das seguintes conclusões: 1.º «Ofendido», por definição legal contida no ar- tigo 113.º do Código Penal, é o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação; 2.º O advérbio «especialmente» não é sinónimo de «ex- clusivamente», significando «de modo especial», «parti- cularmente»; 3.º Para preenchimento do tipo legal do crime de dano do artigo 212.º, n.º 1, do Código Penal, é necessário que a conduta do agente afecte o fim ou função da coisa; 4.º Evidencia -se, assim, uma especial consideração tida pelo legislador quanto ao aproveitamento e utilidade que a coisa pode proporcionar, ou seja, o valor de poder retirar da coisa a sua normal utilidade; 5.º O legítimo possuidor ou detentor da coisa, sendo titular da disponibilidade de fruição das utilidades (do gozo) da própria coisa, é directa e imediatamente atingido pelo dano, ou seja, é a sua vítima concreta; 6.º Ora, pretendendo -se tutelar a função social de relevo que a propriedade encerra em si (o valor intrínseco, que não deverá ser confundido com o direito real — propriedade), deverá considerar -se que o interesse do detentor merece tutela penal à luz das necessidades de direito criminal, na medida em que o mesmo coincide com o interesse espe- cialmente protegido pela norma; 7.º Assim, nesta interpretação, admissível em função do elemento sistemático e da conexão do sentido objectivo da lei com as novas circunstâncias da vida real, o legítimo detentor da coisa tem legitimidade para apresentar queixa contra o agente que a danificou, lesando a disponibilidade de fruição das suas utilidades.

Propõe, em consequência, que o conflito de jurisprudên- cia existente seja resolvido nos seguintes termos: «No crime de dano previsto no artigo 212.º do Código Penal, o possuidor legítimo da coisa tem legitimidade, nos termos do artigo 113.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, para apresentar queixa pela lesão do gozo, uso ou fruição da mesma». 4 — Colhidos os vistos, o processo foi apresentado ao pleno das secções criminais, cumprindo decidir. 5 — A decisão da secção que concluiu pela existência da oposição de julgados não vincula o pleno das secções criminais, que deve pronunciar -se autonomamente ree- xaminando o pressuposto — oposição de julgados — do artigo 437.º, n.º 1, do Código de Processo Penal sobre a questão de saber se a legitimidade para exercer o direito de queixa em caso de crime de dano, previsto e punido pelo artigo 212.º do Código Penal, supõe e exige a qualidade de proprietário, ou se também detém legitimidade quem, não sendo proprietário, tem sobre a coisa danificada, no momento da prática da infracção e por título legítimo, a disponibilidade de fruição das respectivas utilidades.

Pelos termos em que se encontra formulada a contro- vérsia, existe, tal como decidiu a secção, efectiva oposição de julgados, como especificamente resulta da identificação precisa da questão controvertida, que consistia em am- bos os acórdãos (recorrido e fundamento) em saber se o mero detentor/possuidor (não proprietário) de bem móvel (automóvel), do qual tem o uso, gozo e fruição, é ou não titular do interesse juridicamente protegido pelo crime de dano, como condição de legitimidade para efeito apresentar queixa, independentemente de eventual queixa do titular do respectivo direito de propriedade.

A questão sobre que foi reconhecida a oposição de jul- gados consiste, assim, em determinar se o possuidor ou detentor de uma coisa, que não é proprietário, pode ser con- siderado ofendido para efeitos do disposto no artigo 113.º, n.º 1, do Código Penal relativamente ao crime de dano, previsto no artigo 212.º, n. os 1, 2 e 3, do Código Penal. 6 — Por regra, quando o procedimento criminal depen- der de queixa, de acordo com o disposto no artigo 113.º do Código Penal, especificamente no n.º 1, o procedimento não pode ser iniciado sem ser validamente formulada a queixa, que constitui uma condição de procedibilidade.

Estando em causa um crime de dano, previsto no ar- tigo 212.º do Código Penal, que assume natureza semi- pública (com excepção das situações contempladas nos artigos 207.º, ex vi do n.º 4 do artigo 212.º, 213.º e 214.º do Código Penal), o procedimento criminal está dependente da apresentação de queixa por parte do titular do respectivo direito, considerando o artigo 113.º, n.º 1, do Código Penal como tal «o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação». Os termos em que se apresenta a questão controvertida evidenciam que a questão da legitimidade para a apre- sentação de queixa no crime de dano ganha autonomia e configuração próprias, quando o titular de um interesse legítimo relativamente à coisa atingida pelo dano, que não é proprietário, pretender exercer o direito de queixa para perseguição criminal do agente responsável pela lesão.

Com efeito, a realidade das coisas revela a existência de uma pluralidade de situações, assumidas e enquadradas por soluções jurídicas, em que o titular do direito de pro- priedade, ainda que de modo tendencialmente temporário, não exerce efectivamente as faculdades de gozo, de fruição ou de uso de uma coisa móvel ou imóvel, sejam tais si- tuações decorrentes ou constituídas por força de contrato ou por outros modos previstos na lei.

Bastará pensar, por exemplo, nos direitos reais de usufruto, de uso e habita- ção, de superfície ou de servidão predial, ou nos direitos obrigacionais decorrentes dos contratos de comodato, de algumas espécies comuns da compra e venda, de locação financeira ou de simples locação.

Nas sociedades actuais e nas implicações dinâmicas da economia e da funcionalidade instrumental dos bens, o direito de propriedade perdeu alguma da sua expressão modelar, ao mesmo tempo que foram ganhando importân- cia novas realidades, muitas delas de índole marcadamente financeira, que concedem direitos de gozo, de uso e de fruição sobre uma coisa desligados da titularidade jurídica e formal do direito de propriedade, mas em que o utilizador actua e se comporta numa relação de utilidade efectiva sobre a coisa, procedendo até em substancial identidade com a posição do proprietário nos casos em que exista a legítima expectativa de adquirir a coisa em determinado prazo, desde que assegure o cumprimento de cláusulas contratuais com base nas quais se define a sua posição jurídica.

As expressões que a realidade e as exigências do mer- cado e da economia dos bens foram construindo consti- tuem consequências deste outro enquadramento jurídico- -funcional da propriedade.

Importará, pois, equacionar a questão controvertida tendo em atenção as construções jurídicas, umas há muito reconhecidas pelo sistema, outras que têm vindo a ganhar sucessivamente relevância.

Na doutrina e na jurisprudência nacionais têm -se ma- nifestado divergências a respeito da tradução jurídico- -processual do estatuto normativo que a evolução tem colado ao regime nuclear e tradicional da propriedade.

Como revelam as decisões em oposição, no caso em que a coisa venha a ser intencionalmente destruída, dani- ficada, desfigurada ou inutilizada por outrem, uma posição mais abrangente defende que, a par do proprietário, quem aproveita validamente as utilidades da coisa tem também legitimidade para apresentar a respectiva queixa, abrindo o procedimento criminal contra o autor da destruição ou...

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