Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 88/2012, de 08 de Março de 2012

Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 88/2012 Processo n.º 599/2011 Acordam no Plenário do Tribunal Constitucional: I — Relatório. — 1 — O Procurador -Geral da Repú- blica veio requerer a declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 1.º a 15.º, 16.º, n. os 1 e 2, 17.º, n.º 1, e 18.º do De- creto Legislativo Regional n.º 24/2010/M, de 9 de dezem- bro, referente ao regime jurídico do exercício da atividade de executante de instalações elétricas de serviço particular, invocando os seguintes fundamentos: O Decreto Legislativo Regional n.º 24/2010/M, de 9 de dezembro (estabelece o regime jurídico aplicável ao exer- cício da atividade de executante de instalações elétricas de serviço particular), foi publicado no jornal oficial (Diário da República, 1.ª série, n.º 237, de p. 5497 a p. 5500), tendo entrado em vigor 30 dias após a sua publicação (artigo 21.º). Como consta do respetivo preâmbulo, o diploma em apreço foi aprovado pela Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira «ao abrigo da alínea

a) do n.º 1 do artigo 227.º e do n.º 1 do artigo 228.º da Constituição [...]», no pressuposto de que as regras assim ditadas sobre «exer- cício da atividade» e «inspeção e sanções», em matéria da atividade de executante de instalações elétricas de serviço particular naquela Região, assumiam «âmbito regional» e «não estavam reservadas aos órgãos de soberania». Porém, tal pressuposto não se verifica.

Com efeito, as normas constantes dos artigos 1.º a 15.º do Decreto Legislativo Regional n.º 24/2010/M, de 9 de dezembro, padecem de inconstitucionalidades orgânicas.

O Decreto Legislativo Regional n.º 24/2010/M, de 9 de dezembro, titula «regras de exercício» (melhor, «acesso», «exercício» e «permanência») atinentes à «atividade de executante de instalações elétricas de serviço particular» na Região (artigos 1.º a 15.º). As normas constantes das aludidas disposições, lidas conjugadamente, como um todo, instituem um procedi- mento administrativo tendente à emissão de «licença» pela Empresa de Eletricidade da Madeira, S. A. (EEM), para titular o «exercício» («acesso», «exercício» e «per- manência») da aludida atividade na Região.

A administração pública regional fica assim investida de um poder de autorização, seja do «ingresso» e «per- manência» (autorização com função de permissão), seja do «exercício» (autorização com função de controlo), da «atividade» em causa.

Ora, as acima mencionadas disposições consubstanciam uma violação da reserva de competência dos órgãos de soberania, na medida em que constituem, verdadeiramente, uma «intervenção restritiva» da legislação regional na «liberdade de exercício de profissão», que é uma posição jurídica fundamental compreendida no âmbito de proteção da «liberdade de escolha de profissão», garantida pela Constituição (CRP, artigo 47.º, n.º 1). Por outra parte, a «liberdade de exercício de profissão», garantida pelo citado artigo 47.º, («Liberdade de escolha de profissão e acesso à função pública»), n.º 1, é de ca- racterizar, sistemática, estrutural e funcionalmente, como «direito, liberdade e garantia», e como tal está enquadrada na parte I , («Direitos e deveres fundamentais»), título II , («Direitos, liberdades e garantias»), capítulo I , («Direitos, liberdades e garantias pessoais»), da Lei Fundamental.

Assim, a dita «liberdade fundamental» está expres- samente abrangida pela reserva relativa de competência legislativa do Parlamento, sendo, por conseguinte, «[...] da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre tal matéria, salvo autorização ao Governo», ou seja, apenas a Assembleia da República, ou o Governo, creden- ciado com a pertinente «autorização legislativa», poderão validamente dispor sobre esta matéria [CRP, artigo 165.º, n.º 1, alínea

b)]. A reafirmação desta «reserva relativa», no que respeita à «autonomia legislativa» das Regiões, decorre ainda do artigo 227.º, n.º 1, alínea

b), do próprio texto consti- tucional, ao determinar que as mesmas têm o poder de «legislar em matérias de reserva relativa da Assembleia da República, mediante autorização desta», todavia com exceção das previstas nas alíneas

a) a

c) do artigo 165.º da Constituição.

Em sede dos «direitos, liberdades e garantias» não é pois sequer admissível a autorização legislativa do Parlamento a favor da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira, como ocorre noutros domínios [CRP, artigo 227.º, n.º 1, alínea

b)]. Como nota a melhor doutrina, «a reserva abrange os direitos na sua integridade — e não somente as restrições que eles sofram [...]» e, sobretudo, «a reserva é para todo o território nacional; ainda que certa lei se aplique, por hipótese, apenas numa das Regiões Autónomas, o órgão competente para a emitir — tendo em conta os critérios constitucionais de distribuição de poderes — é a Assem- bleia da República e não a respetiva assembleia legislativa regional» (Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, t II , Coimbra 2006, p. 535). Neste sentido depõe a jurisprudência constante do Tribunal Constitucional, por exemplo expressa nos seus Acórdãos n.º 258/2007, (n.º 9, in fine), n.º 423/08 (n.º 9) e n.º 125/10 (n. os 6 e 8) (parece haver dois lapsos do re- querente: no que respeita ao Acórdão n.º 423/08 quererá provavelmente referir -se ao n.º 8, e no que concerne à indicação do último acórdão citado, quererá porventura referir -se ao adiante citado Acórdão n.º 304/11, e apenas no seu n.º 6, proferido no processo n.º 125/10). Sendo atos ultra vires, porque exorbitam do quadro da repartição de competências legislativas entre os órgãos de soberania e as Regiões Autónomas, versando competências legislativas reservadas pela Constituição à Assembleia da República, ou ao Governo, credenciado com a pertinente «au- torização legislativa», as normas constantes dos artigos 1.º a 15.º do diploma em apreço, como um todo, são organi- camente inconstitucionais [CRP, artigos 47.º, n.º 1, 165.º, n.º 1, alínea

b), 227.º, n.º 1, alíneas

a) e

b), e 228.º, n.º 1]. Por outra parte, as normas constantes dos artigos 1.º a 15.º deste diploma produzem efeitos que transcendem o «âmbito regional», ao qual estão circunscritas por impera- tivo constitucional [CRP, artigos 225.º, n.º 3, 227.º, n.º 1, alínea

a), e 228.º, n.º 1]. Com efeito, tal «intervenção restritiva» produz, direta e imediatamente, efeitos em todo o território nacional e, mais latamente, em todo o «mercado interno» da União Europeia, nomeadamente em sede de livre circulação de pessoas e de serviços, criando um «segmento de mercado» circunscrito ao âmbito regional.

Na verdade, ainda que titulares de um «alvará», emitido pelo Instituto dos Mercados de Obras Públicas e Particu- lares e do Imobiliário (Decreto -Lei n.º 12/2004, de 9 de janeiro, maxime artigo 4.º, n.º 1), ou de «inscrição» na Direção Regional de Economia, na Ordem dos Engenhei- ros ou na Associação Nacional dos Engenheiros Técnicos (Decreto Regulamentar n.º 31/83, de 18 de abril, alterado pelo Decreto -Lei n.º 229/2006, de 24 de novembro, ma- xime artigo 7.º, n. os 1 e 5), os interessados em exercerem a atividade de executante de instalações elétricas de serviço particular, na Região, carecerão de requerer, obter e revali- dar, nos termos do regime jurídico em apreço, a pertinente «licença» (artigos 3.º, 4.º, 6.º e 11.º, n. os 1 e 2). Quanto aos trabalhadores (ou prestadores de serviços) dos demais Estados membros da União, para os ditos efei- tos e ainda que titulares de «habilitação» outorgada no Estado de origem, carecerão, igualmente, de requerer, obter e revalidar, nos termos do regime jurídico em apreço, a pertinente «licença» (artigos 3.º, 6.º e 11, n. os 1 e 2). Logo, as normas constantes do artigos 1.º a 15.º do di- ploma em apreço, como um todo, têm efeito extrarregional, determinam ingerência na posição jurídica dos demais tra- balhadores e prestadores de serviços, no mercado nacional e no mercado interno, transcendendo o «âmbito regional» de eficácia, em sentido «material», que a Constituição fixa à autonomia legislativa das Regiões, pelo que também por esta razão são organicamente inconstitucionais [CRP, artigos 225.º, n.º 3, 227.º, n.º 1, alínea

a), 228.º, n.º 1, e 277.º, n.º 1]. Importa, finalmente, referir que o Tribunal Constitucio- nal, no citado Acórdão n.º 258/2007 (n.º 10), explicitou e aplicou este critério, do «âmbito regional» de eficácia, em sentido «material», como limite constitucional à compe- tência legislativa regional, pronúncia que reiterou e apurou no muito recente Acórdão n.º 304/2011 (n.º 6). As normas constantes dos artigos 16.º, n. os 1 e 2, 17.º, n.º 1, e 18.º (regras sobre «inspeção e sanções») do Decreto Legislativo Regional n.º 24/2010/M, também padecem de inconstitucionalidade orgânica.

Com efeito, o Decreto Legislativo Regional n.º 24/2010/M, contém ainda prescrições sobre «inspeção e sanções» (artigos 16.º a 18.º). Quanto às regras em matéria de «inspeção e sanções», no que agora diretamente nos interessa, definem ilícitos de mera ordenação social e as respetivas sanções, cometendo ao «Instituto da Construção e do Imobiliário» (INCI) com- petência para receber participações relativas a «quaisquer infrações ao presente diploma e respetivas disposições regulamentares» (artigo 16.º, n.º 1), para «a aplicação de coimas» (artigo 16.º, n.º 2), para «a ação sancionatória» (artigo 17.º, n.º 1) e, bem assim, o dever desse INCI «in- formar» a EEM, «quando haja lugar à aplicação de sanções acessórias» (artigo 18.º). Por virtude de tais disposições, a Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira imputa diversos poderes e deveres ao INCI, instituto público integrado na adminis- tração indireta do Estado, instituído sob superintendência do Governo [CRP, artigos 198.º, n.º 1, alínea

a), e 199.º, alínea

d), e Decreto -Lei n.º 144/2007, de 27 de abril], a saber: receber participações, aplicar coimas, exercer a ação sancionatória e informar sobre a...

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