Acórdão n.º 117/2008, de 09 de Abril de 2008

Acórdáo n. 117/2008

(rectificado através do Ac.133/2008)

Processo n. 1046/06

Acordam na 3ª Secçáo do Tribunal Constitucional

A - Relatório

  1. José António Leáo Pereira, advogado, propôs contra a Companhia Air France S. A. uma acçáo pedindo uma indemnizaçáo de €61.734,31 e juros por danos patrimoniais e náo patrimoniais decorrentes da perda de uma mala de viagem num voo Roma -Paris -Lisboa, contratado com a ré. A acçáo foi julgada improcedente em 1.ª instância e parcialmente procedente na Relaçáo. O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdáo de 7 de Novembro de 2006, considerando que a responsabilidade pelo extravio da mala estava limitada aos valores previstos no n. 2 do artigo 22. da Convençáo de Varsóvia de 1929 (Convençáo para Unificaçáo de Certas Regras Relativas ao Transporte Aéreo Internacional) e que esse montante (calculado em €468) já tinha sido pago, julgou a acçáo improcedente.

    O autor interpôs recurso deste acórdáo para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n. 1 do artigo 70. da LTC, visando a apreciaçáo de constitucionalidade da norma da alínea a) do n. 2 do artigo 22. da Convençáo de Varsóvia.

  2. Prosseguindo o recurso, o recorrente apresentou alegaçóes em que sustentou as seguintes conclusóes:

    "1 - O presente recurso visa a apreciaçáo da inconstitucionalidade da norma contida do artigo 22, n. 2, a) (entretanto revogada) da Convençáo de Varsóvia de 12 de Outubro de 1929 (Convençáo para Unificaçáo de certas regras relativas ao Transporte Aéreo Internacional), por violaçáo do Principio da Igualdade estabelecido no artigo 130; mas principalmente, por violaçáo da norma do artigo 60, n. 1 (Direitos dos Consumidores) da Constituiçáo da República Portuguesa.

    2 - O artigo 22, n. 2, alínea a), da Convençáo de Varsóvia estabelecia que: "No transporte de bagagens registadas, a responsabilidade do transportador é limitada à quantia de 17 direitos especiais de saque por kilograma, salvo declaraçáo especial de interesse na entrega no destino feita pelo expedidor no momento de confiar o volume ao transportador e mediante o pagamento de uma taxa suplementar eventual. Neste caso, será o transportador obrigado a pagar até ao limite da quantia declarada, salvo se provar que aquela é superior ao interesse real do expedidor na entrega".

    3 - Do acórdáo recorrido consta, nomeadamente:

    - "O transportador só responderá acima dos limites previstos no artigo 22, n. 2, quando o dano resultar do seu dolo, ou da sua culpa, que, segundo a lei portuguesa, for equivalente ao dolo.

    - Esta é a excepçáo à regra do limite da responsabilidade da R., cabendo ao A. o ónus de provar a ocorrência das circunstâncias aí previstas. Náo ficou provado que a R. tenha agido dolosamente ou com culpa equivalente ao dolo. Nesta situaçáo, a responsabilidade da R. pelo extravio da mala de viagem do A. está limitada aos valores previstos no n. 2 do artigo 22 da Convençáo, que a R. já lhe liquidou.

    - Esta limitaçáo de responsabilidade do transportador e a sua aplicaçáo aos casos de presunçáo de culpa deste náo viola qualquer princípio constitucional, até porque o passageiro tem sempre a possibilidade de náo se conformar com este limite, fazendo uma declaraçáo especial de "interesse na entrega" e pagando a taxa suplementar que for devida."

    4 - O Recorrente considera aqui reproduzida a matéria de facto dada, definitivamente, por provada na 1ª instância.

    5 - A responsabilidade civil das transportadoras aéreas por danos causados no transporte de passageiros, bagagens e mercadorias está regulada, se o respectivo transporte aéreo for considerado internacional, nos termos do n. 2, do artigo 1 da Convençáo de Varsóvia, de 12 de Outubro de 1929, que refere:

    ..é considerado transporte internacional todo o transporte no qual, de acordo com o que foi estipulado pelas Partes, o ponto de partida e o ponto de destino, quer haja ou náo interrupçóes de transporte ou

    transbordo, estejam situados quer no território de duas Altas partes contratantes, quer apenas no território de uma Alta parte Contratante, se se previu uma escala no território de um ou outro Estado, mesmo que este Estado náo seja uma Alta parte Contratante".

    6 - Portugal aderiu formalmente e sem reservas a esta Convençáo em 20 de Março de 1947 (crf. Aviso publicado no Diário do Governo 185, 1 Série, de 10/08/1948).

    7 - Tratando -se assim de transporte aéreo internacional nos termos do acima citado artigo, a responsabilidade civil das transportadoras aéreas, de Estados signatários da referida Convençáo, estava, até 04 de Novembro de 2003, regulada na Convençáo e no conjunto de legislaçóes internacionais que a alteraram e tentaram actualizar: Protocolo de Haia de 1955, Convençáo de Guadalajara de 1961, Acordo de Montereal de 1966, Protocolo de Guatemala de 1971 e Protocolos 1,2,3, e 4 de Montereal de 1975, conjunto de instrumentos que os juristas designam por "Sistema de Varsóvia".

    8 - No caso dos autos, considerando a data da verificaçáo dos factos em apreço, a responsabilidade da Recorrida é determinada pelo "Sistema de Varsóvia".

    9 - Segundo o artigo 17, da Convençáo de Varsóvia:

    n° 2 - O Transportador é responsável pelo dano resultante da destruiçáo, perda avaria da bagagem, pela simples razáo de o evento que causou a destruiçáo, perda ou avaria ter ocorrido a bordo da aeronave ou no decurso de quaisquer operaçóes de embarque ou durante qualquer período em que a bagagem se encontrava à guarda do transportador. O transportador náo será, porém responsável se o dano tiver resultado exclusivamente da natureza ou vício próprio da bagagem.

    10 - Este artigo estabelece uma presunçáo contra o transportador, que nos termos do artigo 20 só é exonerado de culpa se provar que ele e os seus propostos tomaram todas as medidas necessárias para evitar o prejuízo ou que lhe era impossível tomá -las.

    11 - Dá -se aqui por reproduzida a brilhante fundamentaçáo jurídica que esteve subjacente à decisáo constante do douto Acórdáo da Relaçáo de Lisboa proferido no presente processo.

    12 - O artigo 22, n. 2, a), da Convençáo de Varsóvia estabelece uma cláusula típica de imposiçáo pela parte forte (transportadora) à parte fraca (passageiro) do pagamento de um seguro que desobriga a transportadora cujo preço da passagem já pressupóe este custo.

    13 - A nossa constituiçáo está informada sob a proibiçáo do abuso de poder económico de uma parte sobre outra, cf. artigo 81, al. e), da CRP.

    14 - O princípio da Igualdade proíbe as diferenciaçóes de tratamento sem fundamento material bastante, que o mesmo é dizer sem qualquer justificaçáo razoável, segundo critérios de valor objectivo, constitucionalmente relevantes.

    15 - Interpretar -se que para ser afastado qualquer limite à indemnizaçáo estabelecido no artigo 22, n. 1 a) da CV, compete ao transportado o ónus da prova que o transportador actuou com dolo ou culpa, é, salvo o devido respeito, estar a condenar ab initio a totalidade dos lesados à mais completa desprotecçáo legal, penalizando -os sem justificaçáo racional e desproporcionada, pois implica que os riscos do "descaminho" da bagagem em transporte aéreo corram quase exclusivamente por sua conta.

    16 - Nestes casos, é praticamente impossível provar a negligência ou o dolo praticado por um qualquer funcionário de uma grande companhia, no âmbito das suas funçóes de manutençáo do fluxo de bagagens num tapete rolante de centenas ou milhares de passageiros num aeroporto.

    17 - E, ofende -se o principio de equidade que refere que: aquele que lucra com a situaçáo deve responder pelo risco ou pelas desvantagens dela resultante.

    18 - As Transportadoras Aéreas náo carecem de qualquer protecçáo especial e o lesado é objecto de um tratamento jurídico manifestamente inferiorizante...

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