Acórdão n.º 59/95, de 10 de Março de 1995

Acórdão n.° 59/95 - Processo n.° 522/94 Acordam no Plenário do Tribunal Constitucional: I - Relatório 1 - Em 14 de Dezembro de 1994 o Presidente da República requereu ao Tribunal Constitucional, nos termos dos números 1 e 3 do artigo 278.° da Constituição da República e dos artigos 51.°, n.° 1, e 57.°, n.° 1, da Lei n.° 28/82, de 15 de Novembro, a fiscalização preventiva da constitucionalidade dos artigos 5.°, n.° 2, e 8.°, números 1, 2 e 3, do decreto n.° 185/VI da Assembleia da República sobre o 'controlo público de rendimentos e património dos titulares de cargos públicos', recebido em 6 do corrente na Presidência da República para promulgação.

2 - O Presidente da República afirma preliminarmente que o decreto n.° 185/VI foi aprovado na sequência da nova apreciação do anterior decreto n.° 174/VI, sobre a mesma matéria, por si solicitada em mensagem fundamentada ao exercer o direito de veto relativamente a esse diploma, e que mantém, na sua maior parte, quanto ao novo decreto, as reservas que anteriormente formulara. Há, todavia, dúvidas de natureza jurídico-constitucional, que crê resultarem de uma opção que consistiu em 'tratar de forma uniforme situações e cargos que pela sua especificidade exigiam, salvo melhor opinião, tratamento diferenciado'. Essas dúvidas constam dos fundamentos do requerido, que são as seguintes: 1 - O artigo 5.°, números 1 e 2, do decreto em apreço, prevê, para o caso de incumprimento culposo, a aplicação de sanções pela não apresentação das declarações previstas nos artigos 3.° e 4.°, após notificação para cumprimento em determinado prazo.

Salvo quanto ao Presidente da República e ao Primeiro-Ministro, o incumprimento culposo fará incorrer os infractores em declaração de perda do mandato, demissão ou destituição judicial, consoante os casos, ou, quando se trate da situação prevista na primeira parte do n.° 1 do artigo 4.°, em inibição por período de 1 a 5 anos para o exercício do cargo que obrigue à referida declaração e que não corresponda ao exercício de funções como magistrado de carreira.

2 - As medidas sancionatórias previstas neste artigo 5.° parecem visar um efeito claramente punitivo, assumindo a natureza de verdadeiras sanções penais, face ao carácter de reprovação que implicitamente possuem e aos fundamentos ético-jurídicos em que se baseiam.

Estas sanções envolvem, para os infractores, a privação ou restrição de direitos fundamentais, como sejam os direitos de participação na vida pública e de acesso a cargos públicos, constantes dos artigos 48.°, n.° 1, e 50.°, n.° 1, da Constituição.

3 - Por sua vez, o artigo 8.° do mesmo decreto atribui competência: Ao Tribunal Constitucional, para aplicar as sanções referidas no artigo 5.° aos titulares dos cargos referidos nas alíneas b), c) (com excepção do Primeiro-Ministro), d), e) (relativamente aos juízes do Tribunal Constitucional e do Tribunal de Contas), e f) a l) do artigo 2.°; Aos tribunais administrativos, para aplicar as sanções referidas no artigo 5.° aos titulares dos cargos referidos na alínea m) do artigo 2.°; À entidade que detém poder disciplinar, para aplicar sanções aos juízes dos tribunais supremos, dos tribunais judiciais de 1.' e 2.' instâncias, dos demais tribunais administrativos e fiscais, dos tribunais militares e dos tribunais marítimos; 4 - A opção pela atribuição de competência para a aplicação de sanções a diferentes categorias de tribunais e a entidades que detenham poder disciplinar, definida apenas em função do estatuto pessoal dos titulares de cargos públicos, poderá acarretar diferenciações de tratamento, sem fundamento material bastante:

  1. Desde logo, em matéria de recurso das decisões punitivas. Os titulares de cargos públicos que vejam as suas causas julgadas nos tribunais administrativos, ou pelas entidades que sobre eles tenham poder disciplinar, têm asseguradas, pelo menos, duas vias de recurso das decisões que lhes apliquem sanções, sendo tal garantia negada aos titulares de cargos públicos sujeitos à jurisdição do Tribunal Constitucional, o que poderá configurar violação do princípio constitucional da igualdade; b) E também relativamente ao juiz Presidente do Supremo Tribunal Militar e aos juízes vogais. As razões que levaram o legislador a sujeitar os juízes do Tribunal Constitucional e do Tribunal de Contas à jurisdição do Tribunal Constitucional e que aparentemente se prendem com o modo de designação e o regime de exercício dos respectivos cargos pareceriam justificar, para o juiz Presidente do Supremo Tribunal Militar e para os juízes vogais, idêntico tratamento, o que não se verifica.

    Para eles, a competência punitiva é cometida à entidade que detém poder disciplinar, o que poderá configurar também violação do princípio constitucional da igualdade, desde logo, face ao diferente sistema de garantias de independência, imparcialidade e isenção; c) O mesmo se poderá passar relativamente aos gestores e aos administradores em representação do Estado ou de pessoa colectiva pública, de empresas de capitais públicos ou de economia mista. Parece não se descortinar, com efeito, fundamento material bastante para subtrair a apreciação dos seus casos à competência da entidade que sobre eles detém poder disciplinar (claramente abrangido nos poderes de tutela), pela mesma ordem de razões - profissionalidade, estatuto profissional próprio e carreira - que terão levado o legislador a prever tal solução para os juízes; d) Que concluir, finalmente, da situação dos magistrados de carreira que exercem funções no Tribunal Constitucional e no Tribunal de Contas, relativamente aos restantes juízes? 5 - A opção pela atribuição de competência para a aplicação destas sanções a entidades que detenham o poder disciplinar poderá envolver também delicadas questões de natureza jurídico-constitucional.

    Prendem-se tais questões com a circunstância de esta opção do legislador o ter obrigado a configurar como sanções de natureza disciplinar (v. artigo 5.°, n.° 2) verdadeiras sanções de natureza penal.

    A degradação de sanções de natureza penal em sanções de natureza disciplinar em função apenas das pessoas a quem se irão aplicar poderá envolver, na circunstância, não só violação do princípio constitucional da igualdade como também violação do princípio do Estado de direito democrático, na sua dimensão de Estado de justiça.

    Acresce que, a não serem configuradas como sanções disciplinares, sempre sairia violado o artigo 205.°, n.° 1, da Constituição - reserva de juiz.

    6 - A opção pela atribuição de competência para a aplicação destas sanções aos tribunais administrativos poderá vir a ser também passível de censura jurídico-constitucional, se se atentar no disposto no artigo 214.°, n.° 3, da Constituição, na natureza penal das sanções e na circunstância de o incumprimento culposo resultar da prática (por acção ou omissão) de factos totalmente estranhos ao exercício das funções, mesmo até após o termo desse exercício.

    7 - Problemática poderá ser também a atribuição de competência para a aplicação destas sanções ao Tribunal Constitucional.

    Sendo inquestionável poder a competência do Tribunal Constitucional ser ampliada por via da lei (artigo 225.°, n.° 3, da Constituição), afigura-se que tal possibilidade terá sempre como limite as competências constitucionalmente cometidas a outros tribunais. Ora, no caso em apreço, a aplicação de sanções de natureza penal parece estar reservada pelo artigo 213.°, n.° 1, da Constituição aos tribunais judiciais, como tribunais comuns em matéria criminal.

    8 - No caso de o infractor ser juiz, salvo tratando-se de juiz do Tribunal Constitucional ou do Tribunal de Contas, o artigo 5.°, n.° 2, do decreto qualifica o incumprimento culposo, para efeitos disciplinares, como grave desinteresse pelo cumprimento do dever profissional.

    Ora, nos termos do artigo 94.° do Estatuto dos Magistrados Judiciais, aos casos de 'grave desinteresse pelo cumprimento dos deveres profissionais', correspondem as sanções disciplinares de suspensão de exercício e de inactividade.

    Poderá resultar daqui diferente tratamento - consequente apenas da opção em abranger, debaixo da mesma disciplina, cargos e situações que, pela sua especificidade, aí parece não caberem- relativamente aos restantes titulares de cargos públicos, os quais pelo mesmo incumprimento culposo, estão sujeitos à aplicação de sanções bem mais pesadas.

    9 - Finalmente, sendo negado ao titular de cargos públicos sujeitos à jurisdição do Tribunal Constitucional a garantia de recurso das decisões punitivas, a norma constante do artigo 8.°, n.° 1, poderá violar o disposto no artigo 20.°, n.° 1, da Constituição.

    A jurisprudência do Tribunal Constitucional vem, com efeito, reconhecendo de forma uniforme que o direito fundamental de acesso aos tribunais para defesa dos direitos e interesses legítimos dos cidadãos, previsto no referido artigo 20.°, n.° 1, da Constituição, abrange a garantia do duplo grau de jurisdição quanto às decisões relativas a quaisquer direitos fundamentais.

    Em conclusão, o Presidente da República requer 'a apreciação da constitucionalidade dos artigos 5.°, n.° 2, e 8.°, números 1, 2 e 3, do decreto n.° 185/VI acima identificado, face às dúvidas colocadas sobre a sua conformidade com os princípios da igualdade e do Estado de direito democrático (artigos 13.° e 2.° da Constituição), com a reserva de juiz (artigo 205.°, n.° l, da Constituição), e ainda com o disposto nos artigos 214.°, n.° 3, 225.°, n.° 3 - com referência ao artigo 213.°, n.° 1 -, e 20.°, n.° 1, da Constituição da República'.

    3 - Notificado o Presidente da Assembleia da República, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 54.° da Lei do Tribunal Constitucional, veio oferecer o merecimento dos autos, juntando ainda os exemplares do Diário da Assembleia da República relativos ao processo legislativo do decreto n.° 185/VI.

    II - Fundamentação

  2. A regularidade formal do decreto n.° 185/VI 4 - Importa, em primeiro lugar, averiguar se o processo de formação do...

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