Acórdão n.º 479/94, de 24 de Agosto de 1994

Acórdão n.° 479/94 - Processo n.° 208/94 Acordam no Tribunal Constitucional: I - O pedido e os seus fundamentos O Presidente da República, sob invocação do disposto nos artigos 278.°, números 1 e 3, da Constituição e 51.°, n.° 1, e 57.°, n.° 1, da Lei n.° 28/82, de 15 de Novembro, veio requerer ao Tribunal Constitucional a apreciação preventiva da constitucionalidade das normas constantes dos artigos 1.°, n.° 1, e 3.°, n.° 1, do Decreto n.° 161/VI da Assembleia da República, enviado para promulgação como lei e que 'estabelece a obrigatoriedade do porte de documento de identificação'.

Suportou-se o pedido nos fundamentos que, por transcrição integral, se deixam seguidamente expostos: 1 - Da conjugação do disposto nas normas do n.° 1 do artigo 1.° e do n.° 1 do artigo 3.° do decreto em apreço, é conferido aos agentes das forças ou serviços de segurança, previstos nas alíneas a), c), d) e e) do n.° 2 do artigo 14.° da Lei n.° 20/87, de 12 de Junho, o poder de exigir a identificação de qualquer pessoa que se encontre ou circule em lugar público, aberto ao público ou sujeito a vigilância policial, quando existam razões de segurança interna que o justifiquem e que serão previamente comunicadas ao identificando, podendo os referidos agentes, em caso de falta, insuficiência ou recusa de identificação, conduzir os cidadãos ao posto policial mais próximo, onde permanecerão apenas pelo tempo estritamente necessário à identificação, nunca superior a seis horas.

2 - Sem pôr em causa a legitimidade constitucional de um dever geral de identificação, as referidas normas suscitam, no entanto, dúvidas de constitucionalidade - bem expressas no respectivo processo de aprovação parlamentar -, na medida em que autorizam que um cidadão, insuspeito da prática de qualquer crime e em local não frequentado habitualmente por delinquentes, possa ser sujeito a identificação policial, através de procedimento susceptível de o vir a privar da liberdade, por um período até seis horas, na base da invocação de razões de segurança interna, excessivamente vagas e indeterminadas.

3 - Na esteira da doutrina e da jurisprudência do Tribunal Constitucional, as medidas de polícia encontram a sua legitimidade constitucional no quadro da prevenção de situações designadas de 'perigo agudo de criminalidade', situações de perigo de futura delinquência assente em factores externos ou exógenos, como uma função de garantia da legalidade em geral, da ordem pública, de segurança interna e dos direitos dos cidadãos, sujeitas, como tal, à observância dos princípios da necessidade e da proporcionalidade.

4 - Com base neste entendimento podem suscitar-se, desde logo, dúvidas sobre a conformidade constitucional das referidas normas, conjugadas, do decreto em apreço, face ao disposto no artigo 27.° da Constituição da República, na exacta medida em que a retenção em posto policial até seis horas não configure um simples 'acto instrumental necessário e adequado a conseguir a prisão ou detenção' de cidadão não identificado, por falta ou insuficiência de meios ou por recusa de identificação.

5 - E, também, quanto à sua necessidade e proporcionalidade, porquanto o artigo 250.°, n.° 3, do Código de Processo Penal estabelece já mecanismos constitucionalmente adequados para atingir esse objectivo, parecendo igualmente desproporcionado que um cidadão, independentemente de qualquer suspeita, subjectiva ou objectiva, se tenha de submeter a um conjunto de medidas que não encontram justificação constitucional como actos instrumentais necessários para garantir a identificação de suspeitos. Poderá estar, assim, a ser violado o princípio da proibição do excesso das medidas de polícia, constante do artigo 272.°, n.° 2, da Constituição da República.

6 - É que, mesmo a admitir-se a constitucionalidade da retenção em posto policial de cidadãos insuspeitos, para efeitos de identificação policial, à mesma deverá seguir-se imediatamente um processo constitucionalmente adequado que lhes garanta a tutela efectiva dos seus direitos, liberdades e garantias, máximo de defesa, não bastando, para tal, a simples redução a auto, nos termos previstos nos números 6 e 7 do artigo 3.° do referido decreto.

7 - Ao que acresce não serem as 'razões de segurança interna', justificativas do procedimento de identificação previsto no n.° 1 do artigo 1.° e no n.° 1 do artigo 3.° do decreto da Assembleia da República, suficientemente determinadas e densas no seu conteúdo, por forma a permitirem o necessário controlo judicial da sua utilização, podendo estar, assim, em causa o princípio da tipicidade legal das medidas de polícia, que se extrai no n.° 2 do artigo 272.° da Constituição.

De referir que, nos termos da Constituição (artigo 272.°, números 1 e 3), não é a segurança interna que pode estabelecer limites aos direitos fundamentais são estes que constituem o limite daquela -, sendo a doutrina unânime em afirmar a incompatibilidade entre garantia de direitos fundamentais e a sua dependência de decisões administrativas de natureza discricionária.

Nestes termos, suscitam-se dúvidas sobre a conformidade constitucional das normas constantes do n.° 1 do artigo 1.° e do n.° 1 do artigo 3.° do decreto n.° 161/VI da Assembleia da República, acima identificado, face ao disposto nos artigos 27.° e 272.°, números 1, 2 e 3, da Constituição da República.

II - A resposta do órgão autor da norma Em conformidade com o disposto nos artigos 54.° e 55.°, n.° 3, da Lei n.° 28/82, foi notificado o Presidente da Assembleia da República para, querendo, se pronunciar sobre o pedido, limitando-se, porém, na respectiva resposta, a oferecer o merecimento dos autos e a juntar os diários da Assembleia da República relativos à discussão e aprovação do decreto em causa.

Cumpre apreciar e decidir.

Porque os poderes de cognição do Tribunal Constitucional se acham subordinados ao princípio do pedido - o Tribunal só pode declarar a inconstitucionalidade ou a ilegalidade de normas cuja apreciação tenha sido requerida, podendo embora fazê-lo com fundamentação na violação de normas ou princípios constitucionais diversos daqueles cuja violação foi invocada - e tendo em conta os termos em que no requerimento do Presidente da República se definiu e especificou o sentido e dimensão das normas relativamente às quais se suscitaram dúvidas de constitucionalidade, caberá apenas decidir neste processo, por ser esse o objecto do pedido, se as normas conjugadas dos artigos 1.°, n.° 1, e 3.°, n.° 1, do decreto n.° 161/VI, 'na medida em que autorizam que um cidadão, insuspeito da prática de qualquer crime e em local não frequentado habitualmente por delinquentes, possa ser sujeito a identificação policial, através de procedimento susceptível de o vir a privar da liberdade, por um período até seis horas, na base da invocação de razões de segurança interna', dispõem ou não de legitimidade constitucional.

III - A actividade de segurança interna.

Seu enquadramento na Constituição e na lei 1 - A matéria relativa à segurança interna, cuja caracterização conceitual pode definir-se como a 'actividade desenvolvida pelo Estado para garantir a ordem, a segurança e a tranquilidade públicas, proteger pessoas e bens, prevenir a criminalidade e contribuir para assegurar o normal funcionamento das instituições democráticas, o regular exercício dos direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos e o respeito pela legalidade democrática', acha-se tratada, embora por forma sumária e indirecta, a propósito das funções e medidas de polícia, no artigo 272.° da Constituição, que dispõe assim: Artigo272.° Polícia 1 - A polícia tem por funções defender a legalidade democrática e garantir a segurança interna e os direitos dos cidadãos.

2 - As medidas de polícia são as previstas na lei, não devendo ser utilizadas para além do estritamente necessário.

3 - A prevenção dos crimes, incluindo a dos crimes contra a segurança do Estado só pode fazer-se com observância das regras gerais sobre polícia e com respeito pelos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.

3 - A lei fixa o regime das forças de segurança, sendo a organização de cada uma delas única para todo o território nacional.

A definição de polícia que neste preceito se contém é tendencialmente funcional e teleológica, pois acentua a forma de acção ou actividade da Administração destinada à defesa da legalidade democrática, da segurança interna e dos direitos dos cidadãos.

Os fins dos poderes funcionais assim atribuídos à polícia terão de ser actuados através de medidas previstas na lei (princípio da tipicidade legal), sendo que, por força da regra de correlação existente entre os meios e os fins, as medidas de polícia não devem ser utilizadas para além do estritamente necessário (princípio da proibição do excesso).

O princípio da tipicidade legal impõe que os actos de polícia, além de terem um fundamento legal, devem traduzir-se em procedimentos individualizados e com conteúdo suficientemente definido na lei, seja qual for a sua natureza: quer sejam regulamentos gerais emanados das autoridades de polícia, decisões concretas e particulares, medidas de coerção ou operações de vigilância, todas as medidas de polícia estão sujeitas ao princípio da precedência da lei e da tipicidade legal.

O princípio da proibição do excesso, por seu turno, acarreta uma obrigatória subordinação das medidas de polícia aos requisitos da necessidade, exigibilidade e proporcionalidade. Com ele reafirma-se enfaticamente o princípio constitucional fundamental em matéria de actos públicos potencialmente lesivos de direitos fundamentais, em termos de tais actos só deverem ir até onde seja imprescindível para assegurar o interesse público em causa, sacrificando ao mínimo os direitos dos cidadãos. Nesta sede isto significa que o emprego das medidas de polícia deve ser sempre justificado pela estrita necessidade e que não devem nunca utilizar-se medidas gravosas quando outras de menor penosidade sejam suficientes para a concretização da tarefa...

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