Acórdão n.º 231/94, de 28 de Abril de 1994

Acórdão n.° 231/94 - Processo n.° 232/93 Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional: I 1 - Em 7 de Abril de 1993, o provedor de Justiça, ao abrigo do disposto no artigo 281.°, n.° 2, da Constituição, veio requerer ao Tribunal Constitucional a fiscalização da constitucionalidade da norma do n.° 3 do artigo 3.° do Regulamento Especial do Regime de Pensões de Sobrevivência (RERPS) de 1970, publicado no Diário do Governo, 2.' série, de 26 de Janeiro de 1971.

2 - Fundamentando a sua pretensão, o requerente apresentou o seguinte quadro argumentativo: 1.° O regime jurídico das pensões de sobrevivência estabelecido pelo Decreto-Lei n.° 277/70, de 18 de Junho, e desenvolvido pelo citado Regulamento (aliás, integrado em diploma legal por força do artigo 1.°, n.° 2, daquele decreto-lei) foi objecto de reformulação através do Decreto-Lei n.° 322/90, de 18 de Outubro. No seu âmbito de aplicação incluem-se, além das pensões de sobrevivência, o subsídio por morte e para assistência por terceira pessoa.

  1. Entre as principais disposições inovadoras deste último diploma destaca-se o artigo 7.°, alínea a), a consagrar igualdade de tratamento dos cônjuges no que respeita à definição da titularidade do direito às pensões de sobrevivência.

  2. Elimina-se, por essa forma, a diferença constante do n.° 3 do artigo 3.° do RERPS, a qual se mostrava desconforme com o princípio da igualdade, consignado no artigo 13.° da Constituição.

  3. Refira-se, a propósito, ainda, a incompatibilidade entre a citada norma e a do artigo 5.°, n.° 4, da Lei de Bases da Segurança Social - Lei n.° 28/84, de 14 de Agosto -, por esta exprimir com clareza a proscrição de qualquer discriminação, designadamente em função do sexo.

  4. No entanto, as alterações legislativas introduzidas pelo Decreto-Lei n.° 322/90, de 18 de Outubro, na ausência de qualquer disposição expressa sobre a retroactividade das suas normas, abrangem unicamente as situações ocorridas após o início da sua vigência.

  5. Resulta, por outro lado, do preceituado no seu artigo 15.°, ser o respectivo regime jurídico aplicável em função da data de ocorrência do evento determinante da protecção a garantir.

  6. Reconhecida, ao que parece, a obrigatoriedade de aplicação do referido Regulamento, sem as alterações de 1990, às pensões atribuídas por morte do beneficiário ocorrida em momento anterior ao da data de entrada em vigor do Decreto-Lei n.° 322/90, de 18 de Outubro, justifica-se a sua sindicabilidade, em termos de se ajuizar sobre a constitucionalidade.

  7. A questão surge, concretamente, em relação ao conteúdo do artigo 3.°, n.° 3, do RERPS, no qual se dispõe que: O cônjuge sobrevivo do sexo masculino apenas terá direito à pensão se sofrer de incapacidade permanente e total para o trabalho ou tiver completado 65 anos de idade à data do falecimento da mulher.

  8. Resulta deste preceito que os indivíduos do sexo masculino e os do sexo feminino não se encontram em situação de igualdade no que concerne ao direito à pensão por morte do respectivo cônjuge.

  9. Quanto aos primeiros, é imposto um tratamento manifestamente desfavorável, consubstanciado em dois requisitos arbitrários: a exigência de ter sido atingida a idade de 65 anos em alternativa à verificação da incapacidade total e permanente para o trabalho.

  10. Uma tal diferença de requisitos não pode deixar de ser considerada discriminatória, nos termos da proibição do artigo 13.°, n.° 2, da CRP.

  11. A diversidade de tratamento imposta pela norma visada poderia ser justificável caso houvesse razões objectivamente aceitáveis que afastassem a existência de qualquer distinção discriminatória.

  12. A investigação sobre esse aspecto permite concluir que as circunstâncias históricas que levaram à adopção do regime constante do n.° 3 do artigo 3.° do Regulamento estão relacionadas com uma situação economicamente mais desfavorecida da mulher.

  13. A compensação mediante a atribuição de um tratamento mais favorável que o do cônjuge masculino viúvo foi hoje alterada (Decreto-Lei n.° 322/90, de 18 de Outubro). Não pode, por isso, sustentar-se coerentemente a posição em que se baseara a dicotomia de tratamento consagrada naquela norma.

  14. De facto, é sobejamente reconhecido ter a mulher, hoje, quer no plano social, quer no mercado de trabalho, um posicionamento diferente do existente na época em que foi regulamentado o regime das pensões de sobrevivência da segurança social.

  15. Assim o entendeu esse Tribunal no seu Acórdão n.° 191/88, publicado em 6 de Outubro de 1988 (Diário da República, 1.' série), ao não admitir como consentânea com o princípio da igualdade a diferença de tratamento do cônjuge supérstite em razão do sexo, tal como figurava na alínea b) do n.° 1 da base XIX da Lei n.° 2127, de 13 de Agosto de 1965.

  16. Se é certo que no passado a desigualdade de facto entre mulheres e homens permitia compreender um tratamento normativo de privilégio, nada justificaria à luz da actual Constituição, mesmo na versão originária, uma discriminação dos cônjuges sobrevivos masculinos, ainda que menos afortunados do que as suas consortes.

  17. A contribuição do legislador para a correcção de desigualdades sociais não pode passar pela redução do estatuto dos homens em tudo quanto não signifique um privilégio sem fundamento objectivo. Passará, sim, pelo enriquecimento do estatuto das mulheres.

  18. Apenas a carência económica, surgida ou agravada pela morte do outro cônjuge, permite garantir suporte objectivo e adequado à atribuição de pensão de sobrevivência - não à diferença de sexo.

  19. Sob a protecção do princípio da igualdade, isto há-de ser assim, no presente como no futuro, e, bem assim, nas situações de carência constituídas no passado que perdurem hoje e às quais foi negada a prestação destas pensões com base na norma visada.

  20. Do exposto se retira a utilidade da fiscalização da constitucionalidade da norma. Embora revogada, ela é responsável pela não produção de certos efeitos no ordenamento jurídico. Não se trata, pois, de obter uma simples correcção formal do sistema.

Por estas razões, o provedor acaba por requerer a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma que o n.° 3 do artigo 3.° do RERPS contém, 'porque é supervenientemente inconstitucional, desde a vigência do artigo 13.° da actual Constituição'.

3 - Convidado a pronunciar-se sobre este pedido o órgão autor da norma impugnada, veio o Primeiro-Ministro oferecer o mérito dos autos.

Passemos então a decidir.

II 1 - Caracterizemos, antes do mais, e do ponto de vista jurídico-constitucional, o pedido do provedor de Justiça.

Está em causa um pedido de declaração de inconstitucionalidade de norma de direito ordinário anterior à vigência da Constituição de 1976. Conforme resulta do disposto no artigo 290.°, n.° 2, da Constituição (na redacção decorrente da segunda revisão constitucional - correspondendo, sem alterações, ao artigo 292.°, n.° 2, da versão originária e ao artigo 292.° decorrente da primeira revisão constitucional), 'o direito ordinário anterior à entrada em vigor da Constituição mantém-se, desde que não seja contrário à Constituição ou aos princípios nela consignados'. Donde resulta que o RERPS de 1970 se manteve em vigor mesmo após a entrada em vigor da lei fundamental de 1976, porquanto a eventual desconformidade (material) do mesmo face à nova Constituição não dispensa, antes implica, um específico processo de apreciação e declaração de inconstitucionalidade.

Com efeito, apenas podem estar em causa nesta sede questões de desconformidade material face à Constituição de 1976, mostrando-se subtraída a qualquer tipo de controlo a eventual desconformidade da norma em causa face ao ordenamento constitucional anterior a 25 de Abril de 1976, como irrelevantes serão também as eventuais contradições de natureza orgânica ou formal das normas desse direito ordinário anterior face à Constituição de 1976.

Por outro lado, o preceito constitucional chamado à colação (artigo 290.°, n.° 2) inculca uma ideia de caducidade do direito ordinário anterior à vigência da Constituição de 1976 que com ela se mostre materialmente incompatível (seja por confronto com normas seja com princípios constitucionais), mas, porque em certa medida nesse preceito se contém uma novação de índole genérica do seu título de legitimidade (todo o direito ordinário anterior subsiste, na medida em que não se mostre desconforme com o novo ordenamento constitucional), daí resulta que a presunção da sua subsistência terá sempre de ser afastada por um específico processo de verificação da caducidade produzida pela entrada em vigor da nova Constituição.

Ora, como a Constituição recebe materialmente o direito ordinário anterior no mesmo pé de igualdade que o direito ordinário posterior à sua vigência, a verificação da eventual caducidade daquele pressupõe um juízo de constitucionalidade idêntico à apreciação da inconstitucionalidade material atinente a normas (ordinárias) posteriores à Constituição.

Com o distinguo de que em relação ao direito ordinário anterior o juízo de inconstitucionalidade não determina a sua invalidade desde a origem, mas antes e tão-somente retroage os seus efeitos à data da entrada em vigor da Constituição, daí decorrendo que a norma de direito ordinário anterior considerada inconstitucional só tenha deixado de vigorar apenas a partir de 25 de Abril de 1976 - inconstitucionalidade superveniente (a que acresceria ainda, na opinião de Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, t. II, 3.' ed., Coimbra, 1991, p. 490, que tal declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, não determinaria a repristinação da norma anterior que ela eventualmente haja revogado).

2 - Conforme refere o requerente, a norma em causa já não vigora neste momento no nosso ordenamento jurídico. Com efeito, em virtude da entrada em vigor do Decreto-Lei n.° 322/90, de 18 de Outubro, o RERPS deve ter-se por revogado.

A este propósito pode ler-se no preâmbulo do decreto-lei de 1990: A generalização do...

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