Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 397/2012, de 13 de Setembro de 2012

TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 397/2012 Processo n.º 576/12 Acordam em Plenário no Tribunal Constitucional: Relatório. — O Representante da República para a Re- gião Autónoma da Madeira requereu ao Tribunal Cons- titucional, nos termos dos n. os 2 e 3 do artigo 278.º da Constituição da República Portuguesa (Constituição), e dos artigos 51.º, n.º 1, e 57.º, n.º 1, da Lei de Organização, Fun- cionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), a apreciação da conformidade com a Constituição das normas constantes dos artigos 1.º, 2.º, 3.º, 7.º, n. os 1 e 2, 10.º e 11.º, n.º 1, alínea

b), do decreto que «aprova normas para a proteção dos cidadãos e medidas para a redução da oferta de “drogas legais”», aprovado pela Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira em sessão plenária de 31 de julho de 2012. O pedido de fiscalização de constitucionalidade apre- senta a seguinte fundamentação: «[...] III — Fundamentação. 17.º O artigo 1.º do decreto sob apreciação institui a proi- bição de venda ou disponibilização por qualquer forma de substâncias psicoativas não especificamente contro- ladas ao abrigo de legislação própria. 18.º Por sua vez, o artigo 2.º determina que estão abrangi- das todas as substâncias de origem natural ou sintética, em qualquer estado físico ou de um produto, planta cogumelo, ou parte dela contendo substância, com ação direta ou indireta sobre o sistema nervoso central, sem indicação específica para uso humano e cujo fabrico ou introdução no comércio não seja regulado por dis- posições próprias. 19.º O artigo 3.º sujeita a uma contraordenação quem anunciar ou publicitar, vender ou ceder, por qualquer forma, substâncias psicoativas consideradas no presente diploma, sendo determinadas e aplicadas coimas nos termos dos artigos 8.º, 9.º e 10.º 20.º Nos termos do artigo 7.º, é proibida toda a atividade comercial associada à produção e comercialização das substâncias consideradas no diploma (n.º 1), devendo a Inspeção Regional das Atividades Económicas (IRAE) intervir de imediato e proceder ao encerramento de todos os espaços onde sejam disponibilizadas estas substân- cias (n.º 2). 21.º Conjugando estas últimas disposições com o disposto no artigo 10.º, a atividade comercial associada à produ- ção e comercialização das substâncias consideradas no diploma constitui também uma contraordenação punível com uma coima. 22.º As disposições invocadas visam “implementar na Região um regime contraordenacional de proibição genérica de qualquer substância psicoativa que não possua regime próprio, sem prejuízo do quadro penal adequado que venha a ser aprovado na Assembleia da República”, como, aliás, resulta do preâmbulo do de- creto em causa. 23.º O Decreto -Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, na sua redação atual, contém o regime jurídico aplicável ao tráfico e consumo de estupefacientes e substâncias psi- cotrópicas, conferindo à matéria uma natureza penal. 24.º Esclarece o preâmbulo do diploma regional em apreciação que “a dimensão do problema para a saúde, subjacente à proliferação destes consumos, constitui fundamento bastante para que seja tomada uma opção legislativa diferente”. 25.º Não se ignora que o direito e o dever de prote- ção da saúde têm consagração constitucional, sendo qualificados pela Constituição como direitos e deveres fundamentais.

Na verdade, a Constituição da República Portuguesa reconhece no artigo 64.º o direito à proteção da saúde e o dever de a defender e promover, dispondo, pelo seu n.º 1, que “[t]odos têm direito à proteção da saúde e o dever de a defender e promover”. O direito à proteção da saúde é realizado, segundo a alínea

b) do n.º 2 do artigo 64.º da lei fundamental, designadamente, “[...] pelo desenvolvimento da educação sanitária do povo e de práticas de vida saudável’’, dispondo o n.º 3 do mesmo preceito constitucional que, para assegurar o direito à proteção da saúde, incumbe prioritariamente ao Estado “estabelecer políticas de prevenção e tratamento da toxicodependência” [alínea

f)]. 26.º No âmbito dos “Direitos e deveres económicos”, a Constituição estabelece ainda, pelo n.º 1 do artigo 60.º, o direito dos consumidores à “proteção da saúde”, dis- pondo no n.º 2 que “[a] publicidade é disciplinada por lei, sendo proibidas todas as formas de publicidade oculta, indireta ou dolosa”. 27.º Na caracterização jurídico -constitucional do direito à proteção da saúde, a doutrina e a jurisprudência cons- titucionais reconhecem que este direito fundamental não apresenta sempre a mesma natureza, podendo nele avultar a veste de direito, liberdade e garantia ou, em outros casos, de direito económico ou social. 28.º Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol.

I , 4.ª ed., Coimbra Editora, 2007, p. 825, em anotação ao artigo 64.º, susten- tam que “[t]al como muitos outros ‘direitos económicos, sociais e culturais’, também o direito à proteção da saúde comporta duas vertentes: uma, de natureza negativa, que consiste no direito a exigir do Estado (ou de terceiros) que se abstenham de qualquer ato que prejudique a saúde; outra, de natureza positiva, que significa o direito às medidas e prestações estaduais visando a prevenção das doenças e o tratamento delas”. 29.º Noutra perspetiva, Carla Amado Gomes, Defesa da Saúde Pública vs.

Liberdade Individual, Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, Lis- boa, 1999, pp. 9 e segs.: escreveu: “Daí que se possa dizer [...] que, no quadro do Estado social, a intervenção pública das autoridades administrativas de saúde se desdobra em duas facetas: por um lado regulamentando, interditando, autorizando, impondo, enfim, determi- nadas formas de atuação aos particulares, quando se movam em áreas relacionadas com a saúde pública, por outro, assumindo o encargo de assegurar todo um conjunto de prestações de caráter material (e não só) [...]. É contudo, na lei fundamental de 1976 que surgem bem patentes as duas vertentes do bem saúde, no ar- tigo 64.º Por um lado, a faceta de direito subjetivo à saúde — ‘todos têm direito à proteção da saúde’ —, a par de um dever fundamental de a defender e promover (n.º 1), por outro, a dimensão objetivo -programática, que se traduz na imposição de tarefas ao Estado, de criação e manutenção de uma estrutura de prestação de cuidados de saúde à coletividade (o Serviço Nacional de Saúde — n. os 2 e 3) [...]. Esta tarefa fundamental do Estado [...] bem como assim a dimensão subjetiva do direito à saúde, correspondem à explicitação de uma perspetiva predominantemente positiva, de promoção do bem saúde.

No entanto, o direito à saúde comporta uma vertente negativa, ‘que consiste no direito a exigir do Estado (e de terceiros) que se abstenham de qual- quer ato que prejudique a saúde’. [...] Há, assim, uma bifacetação do Estado — e da Administração [...] — no domínio da saúde. À friendliness do Estado que cria e mantém uma estrutura administrativa de prestação de cuidados de saúde tendencialmente gratuita, junta -se uma roughness (do outro lado) da Administração que tem por missão prevenir e debelar situações de risco sanitário, se necessário com o sacrifício de direitos dos cidadãos.” 30.º Também Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, t.

I , Coimbra Editora, 2005, p. 661, em anotação ao artigo 64.º, admitem que “[a] consagra- ção constitucional do dever fundamental de defender e promover a saúde configura -se como norma habilitadora da introdução de normas proibitivas ou de obrigações legais em vista à defesa da saúde pública.

Sem dúvida que o referido dever fundamental deve ser conjugado com outros direitos fundamentais, não se podendo obliterar, na sua concretização legislativa, os limites constitucio- nais às restrições de direitos, liberdades e garantias.” 31.º Admitindo -se legítima a preocupação expressa pelo legislador regional, sobretudo em face dos direitos e interesses em presença, avultando o direito à saúde, nas suas múltiplas dimensões, as questões suscitadas pelas normas em apreciação prendem -se, prima facie, com a eventual natureza penal das matérias nelas tratadas. 32.º Como vimos, o enquadramento normativo, nacional, internacional e europeu, da “venda ou disponibilização por qualquer forma de substâncias psicoativas” aponta para a tutela penal dos bens e direitos afetados pelo acesso e consumo dessas substâncias. 33.º Ora, a definição dos ilícitos de mera ordenação social operada pelas normas do decreto regional agora subme- tido à apreciação do Tribunal Constitucional é feita a partir da consideração da incompletude (logo, ineficácia) das listagens das substâncias psicotrópicas proibidas ou condicionadas na legislação nacional, dada a prolife- ração de substâncias com efeitos semelhantes aos das substâncias proibidas, com “ação direta ou indireta sobre o sistema nervoso central” (como se lê no artigo 2.º), proibindo -se, por isso, “a venda ou disponibilização de substâncias psicoativas não especificamente controladas ao abrigo de legislação própria” (artigo 1.º). 34.º A opção pelo regime de ilícito de mera ordenação so- cial fica ainda esbatida quando a mesma Assembleia Le- gislativa aprovou, alguns dias antes (em 17 de julho pp.), uma resolução — a Resolução n.º 32/2012/M, de 1 de agosto — que consubstancia uma proposta de lei à Assembleia da República com o seguinte teor: “Artigo 1.º Objeto O regime previsto pelo Decreto -Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, que definiu o regime jurídico do tráfico e consumo de estupefacientes e psicotrópicos, com as alterações posteriormente concretizadas, é aplicável a todas as outras substâncias psicoativas que não sejam controladas por legislação própria e que não estejam contempladas nas tabelas de substâncias proibidas, não obstante produzirem os mesmos efeitos.

Artigo 2.º Âmbito O presente diploma entra em vigor no dia seguinte ao da sua publicação.” 35.º A esta luz, poder -se -ia equacionar que o legislador op- tasse por um regime penal ou...

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