Acórdão n.º 8/2006, de 28 de Novembro de 2006

Acórdão n. o 8/2006 Processo n. o 2859/2005 -- 5. a Secção Acordam no pleno das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça: I -- Relatório Marília Dulce Pires Coelho Morgado Raimundo e João Bento Raimundo, devidamente identificados no processo, vieram interpor recurso extraordinário para fixação de jurisprudência do Acórdão da Relação de Coimbra (processo n. o 629/2005), proferido em 27 de Abril de 2005, que, confirmando a decisão recorrida, decidiu que o particular alegadamente caluniado pode constituir-se assistente em procedimento criminal ins- taurado contra o indiciado como seu caluniador.

Os recorrentes alegaram, em síntese, que, quanto àquela constituição de assistente, no domínio da mesma legislação, o Acórdão da Relação do Porto de 24 de Março de 1999 sufragou entendimento oposto: naquele indicado contexto, o particular alegadamente caluniado não pode constituir-se assistente.

Nestes termos, os recorrentes entenderam que deve ser fixada jurisprudência no sentido de que «o crime de denúncia caluniosa, previsto e punido no artigo 365. o do Código Penal, é um crime em que está em causa um bem jurídico de natureza pública, cuja perseguição compete ao Ministério Público.

O bem jurídico pro- tegido é a boa administração da justiça, pelo que este tipo legal assume um interesse predominantemente público, não sendo compatível com os interesses de um ofendido particular, pelo que não é admissível a cons- tituição do alegado ofendido como assistente e, con- sequentemente, o seu requerimento de abertura de ins- trução não pode ser admitido, pelo que se ordena a revogação do acórdão proferido pela Relação de Coim- bra e se revoga o despacho recorrido, ordenando-se que não seja admitida a constituição como assistente do ale- gado ofendido» ( 1 ). Remetido o processo a este Supremo Tribunal, após diversas vicissitudes, foi aposto visto pelo Ministério Público ( 2 ). Colhidos os vistos, o processo foi a conferência, e, por Acórdão de 6 de Abril de 2006, este Supremo Tri- bunal reconheceu a existência de oposição de julgados e determinou «o prosseguimento do presente recurso extraordinário para fixação de jurisprudência» ( 3 ). Cumprindo o disposto no n. o 1 do artigo 442. o do Código de Processo Penal, foram notificados os recor- rentes e o Ministério Público junto deste Supremo Tri- bunal para apresentarem as respectivas alegações escri- tas, as quais, entretanto, foram juntas aos autos.

Nelas, o Ministério Público considerou que o acórdão recorrido deve ser mantido, propondo que a jurispru- dência seja fixada nos seguintes termos: «Em processo por crime de denúncia caluniosa, previsto e punido no artigo 365. o do Código Penal, o particular ofendido tem legitimidade para se cons- tituir assistente( 4 ).» Por sua vez, os recorrentes terminaram as suas ale- gações com a formulação das seguintes conclusões: «A) No acórdão fundamento decidiu-se que, quando está em causa uma queixa pelo crime de denúncia caluniosa, o participado pela eventual prá- tica do crime não pode constituir-se assistente, por o bem jurídico que o tipo criminal protege ser um bem jurídico de ordem pública, de interesse público, e não um bem jurídico de natureza particular ou pri- vada.

Logo, não podendo constituir-se assistente, tam- bém não pode requerer a instrução; B) No acórdão recorrido decidiu-se que `a incri- minação de denúncia caluniosa protege directa, ime- diata e simultaneamente o interesse da administração da justiça e a consideração e honra da pessoa denun- ciada, a qual a lei quis especialmente, também, pro- teger.

A lei, no caso, tutela tanto a boa administração da justiça, quanto o indivíduo'; C) O acórdão recorrido negou provimento ao recurso intentado pelos ora recorrentes, por ter che- gado a uma conclusão diametralmente oposta à cons- tante do acórdão fundamento; D) Por força do exposto, é legítimo pedir a revo- gação do acórdão proferido pela Relação de Coimbra, ordenando-se a revogação desse acórdão e do des- pacho proferido em 1. a instância, primeiro fundamento do recurso, ordenando-se que não seja admitida a constituição como assistente do alegado ofendido; E) Os dois acórdãos em referência (fundamento e recorrido) foram proferidos no domínio da mesma legislação, estando em contradição; F) É, assim, legítimo pedir a presente harmonização de jurisprudência, a qual deve ser fixada nos termos seguintes: No crime de denúncia caluniosa, previsto e punido no artigo 365. o do Código Penal, está em causa um bem jurídico de natureza pública, cuja perseguição compete ao Ministério Público; O bem jurídico protegido é a boa administração da justiça, pelo que o tipo legal assume um interesse predominantemente público, que excluiu os interesses do ofendido particular; Não é admissível a constituição do ofendido como assistente, nem a apresentação de requerimento de abertura de instrução pelo ofendido ( 5 ).» Colhidos os vistos, teve lugar a conferência do pleno das secções criminais, a que alude o artigo 443. o do Código de Processo Penal, cumprindo, ora, conhecer a decidir.

II -- Reafirmação do reconhecimento da oposição de julgados e saneamento dos autos Da exposição precedente, é manifesto que os dois acórdãos em conflito, o acórdão recorrido, da Relação de Coimbra, e o acórdão fundamento, da Relação do Porto, ambos transitados em julgado, pronunciaram-se em sentido contrário relativamente a uma mesma ques- tão de direito, no domínio da mesma legislação e no que respeita a factos idênticos: quanto à admissibilidade da constituição de assistente em procedimento por crime por denúncia caluniosa, o acórdão recorrido concluiu pela sua admissibilidade, ao passo que o acórdão fun- damento entendeu o contrário.

Nestes termos, confirma-se, ora em pleno, a existência da oposição de julgados a que se refere o artigo 437. o , n. os 1 e 2, do Código de Processo Penal.

Inexistem quaisquer questões processuais ou inciden- tais que obstem ao conhecimento do mérito da causa.

III -- Delimitação do objecto da fixação de jurisprudência em causa Atentos os pedidos deduzidos nos presentes autos e as respectivas motivações, o objecto deste recurso extraordinário para fixação de jurisprudência cinge-se a saber se em procedimento por crime de denúncia calu- niosa é ou não admissível a constituição de assistente por parte do alegadamente caluniado.

IV -- A fundamentação dos acórdãos recorrido e fundamento Partindo do estatuto legal de assistente e do(s) bem(ns) jurídico(s) protegido(s) pelo crime de denúncia caluniosa, os acórdãos recorrido e fundamento con- cluem de forma antagónica quanto ao indicado objecto da presente fixação de jurisprudência.

Em sede de fundamentação da decisão, no acórdão recorrido consignou-se, no essencial, que: «O conceito de assistente não é definido em con- creto, limitando-se a lei a indicar genericamente casos em que a posição de assistente pode ser assumida, entre...

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