Acórdão n.º 423/87, de 26 de Novembro de 1987

Acórdão n.º 423/87 Processo n.º 110/83 Acordam no Tribunal Constitucional: I - A questão 1 - O Presidente da Assembleia da República, ao abrigo do disposto nos artigos 281.º, n.º 1, alínea a), da Constituição e 51.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, veio requerer a declaração com força obrigatória geral da inconstitucionalidade das normas do Decreto-Lei n.º 323/83, de 5 de Julho, alegando para tanto o seguinte conjunto de razões: O Decreto-Lei n.º 323/83 pretendeu proceder à regulamentação do preceito concordatário que respeita à leccionação da disciplina de Religião e Moral Católicas nas escolas públicas dos vários graus; Nesse diploma, deu-se prevalência ao ensino da religião e moral católicas, embora justificada com base na especial representatividade da população católica doPaís; Sem embargo, o referenciado diploma parece ofender os artigos 13.º, n.º 2, 41.º, n.º 1, e 41.º, n.º 4, todos da Constituição; Com efeito, o artigo 13.º, n.º 2, da Constituição estabelece, além do mais, que ninguém pode ser privilegiado em razão da religião; Por seu turno, o artigo 41.º, n.º 1, firma o princípio da liberdade religiosa, enquanto o n.º 4 deste mesmo preceito determina que as igrejas e outras comunidades religiosas estão separadas do Estado e são livres na sua organização e no exercício das suas funções e do culto.

2 - Em cumprimento do disposto no artigo 54.º da Lei n.º 28/82, foi notificado o Governo como órgão autor da norma questionada, havendo produzido a competente resposta, da qual agora se destaca a conclusão, concebida nos seguintestermos: O Decreto-Lei n.º 323/83 não sofre de inconstitucionalidade orgânica, porquanto não faz inovação legislativa, limitando-se a reproduzir, no essencial, as normas do artigo XXI da Concordata, das bases II e VII da Lei n.º 4/71, de 21 de Agosto, da base III da Lei n.º 5/73, de 25 de Julho, e do artigo 1.º da Lei n.º 65/79, de 4 de Outubro; Também não sofre de inconstitucionalidade material, dado que não viola, nos termos expostos, os princípios da igualdade, da liberdade de consciência, de religião e culto, bem como da não confessionalidade do ensino e da laicidade do Estado.

3 - Os autos foram, entretanto, por duas vezes, objecto de nova distribuição, com a consequente e sucessiva mudança de relator.

Importa agora apreciar e decidir.

A sequência metodológica que se vai trilhar começará por uma mirada ao processo de formação legislativa do Decreto-Lei n.º 323/83, com destaque para as vicissitudes que precederam a sua edição, nomeadamente no domínio da fiscalização preventiva da constitucionalidade.

II - A génese legislativa do Decreto-Lei n.º 323/83 1 - No ano de 1982, o Conselho de Ministros aprovou um decreto registado sob o n.º 338-G/82, no livro de registos de diplomas da Presidência do Conselho de Ministros, que veio ulteriormente a ser objecto de fiscalização de constitucionalidade por parte do Conselho da Revolução, ao abrigo do disposto na alínea a) do artigo 146.º e nos n.os 3 e 4 do artigo 277.º da versão originária da Constituição.

Pela Resolução n.º 96/82, publicada no Diário da República, 1.' série, n.º 137, de 17 de Junho de 1982, o Conselho da Revolução, 'precedendo parecer da Comissão Constitucional e no particular entendimento de que nos artigos 2.º e 3.º do diploma em apreciação se consagra basicamente a solução já constante na base VII, n.os 2 e 4, da Lei n.º 4/71', não se pronunciou pela sua inconstitucionalidade.

No preâmbulo do decreto começava por se afirmar que 'o ensino da religião e moral católicas nas escolas públicas dos vários graus é entre nós ministrado em obediência à directriz estabelecida no artigo XXI da Concordata assinada entre o Estado Português e a Santa Sé em 7 de Maio de 1940, e confirmada pelo artigo II do Protocolo Adicional, de 15 de Fevereiro de 1975, que o Decreto n.º 187/75, de 4 de Abril, seguidamente aprovou para efeito da sua ratificação', assinalando-se, em seguida, que, 'não se tendo até então procedido à regulamentação adequada do preceito concordatário no que respeita à leccionação da disciplina de Religião e Moral Católicas', se julgara chegado o momento oportuno de preencher essa lacuna, completando-se, em termos convenientes, a execução do princípio fixado.

Nessa conformidade, foi aprovado o referenciado decreto, composto pelo seguinte articulado: Artigo 1.º O Estado, tendo em conta o dever de cooperação com os pais na educação dos filhos, bem como os seus deveres gerais em matéria de ensino, garante nas suas escolas o ensino das ciências humanas, morais e religiosas, essenciais à formação integral dos cidadãos.

Art. 2.º - 1 - De acordo com a especial representatividade da população católica no País, o Estado ministrará o ensino da religião e moral católicas nas escolas públicas elementares, médias e complementares aos alunos cujos pais, ou quem suas vezes fizer, não tiverem pedido isenção.

2 - Sendo maiores, compete aos próprios alunos fazer o pedido de isenção.

Art. 3.º - 1 - O pedido de isenção, seja dos pais ou encarregados de educação, seja dos alunos maiores, será formulado no boletim de matrícula ou no boletim de inscrição nas disciplinas que integram o núcleo do ano curricular em que seja ministrado o ensino da religião e moral católicas.

2 - O boletim de matrícula e o boletim de inscrição destinados a recolher o pedido de isenção obedecerão ao modelo aprovado por despacho do Ministério da Educação e das Universidades.

Art. 4.º - 1 - A disciplina de Religião e Moral Católicas faz parte do curriculum escolar normal em todas as escolas públicas elementares, médias ou complementares, dependentes ou não do Ministério da Educação e das Universidades.

2 - As aulas da disciplina de Religião e Moral estão sujeitas ao regime aplicável às restantes disciplinas curriculares, nomeadamente no que se refere às condições gerais de matrícula, regime de faltas, avaliação de conhecimentos, prestação de provas e apoio pedagógico devido a alunos e docentes.

Art. 5.º - 1 - A orientação doutrinária do ensino da religião e moral católicas é da exclusiva responsabilidade da Igreja católica.

2 - A elaboração e modificação dos programas da disciplina competem ao episcopado, que os enviará ao Ministério da Educação e das Universidades antes da sua entrada em vigor, para conhecimento oficial e publicação conjunta com os programas das restantes disciplinas.

Art. 6.º A aprovação dos manuais de ensino da disciplina, bem como de outros instrumentos auxiliares de trabalho, destinados a alunos ou professores, compete ao episcopado, que promoverá a sua edição ou divulgação, depois de dar conhecimento ao Ministério da Educação e das Universidades.

Art. 7.º - 1 - Os professores de Religião e Moral Católicas fazem parte do corpo docente dos estabelecimentos de ensino em que prestam serviço, gozando do estatuto legal correspondente à categoria a que pertencem.

2 - Os professores de Religião e Moral Católicas serão contratados mediante proposta da autoridade eclesiástica competente, com as habilitações legais requeridas.

Art. 8.º Nas actuais escolas de ensino médio que venham a ser convertidas em escolas de ensino superior destinadas à preparação e formação de docentes para os quadros da educação pré-escolar e do ensino básico continuará a ser obrigatório o ensino da religião e moral católicas, nos termos constantes do presentediploma.

Art. 9.º As dúvidas suscitadas na execução deste decreto-lei serão resolvidas por despacho do Ministério da Educação e das Universidades, que previamente ouvirá o episcopado nas matérias pertinentes.

2 - Confrontada com o texto que vem de se transcrever, a Comissão Constitucional, na economia do artigo 284.º, alínea a), da versão originária da Constituição, sobre ele emitiu o parecer n.º 17/82, concluindo no sentido de o Conselho da Revolução não dever pronunciar-se pela sua inconstitucionalidade, o que em realidade veio a suceder através da já citada Resolução n.º 96/82 (cf.

Pareceres da Comissão Constitucional, vol. 19.º, pp. 253 e segs.).

Pela sua importância e também por força das consequências dele advenientes, vão, de seguida, ser expostos os seus núcleos temáticos essenciais, acompanhados de diversos passos da fundamentação que os suportou.

Vejamos então.

O parecer começa por afirmar que o decreto em causa não enferma de inconstitucionalidadeorgânica.

Porque nele se disciplina uma matéria (o ensino da religião e moral católicas nas escolas públicas) que directamente se conexiona com a liberdade de expressão, a liberdade religiosa e a liberdade de ensino, expressamente contempladas nos artigos 37.º, 41.º e 43.º, e também com o sistema de ensino, a que se referem em particular os artigos 74.º e 75.º, todos da versão originária da Constituição, poder-se-ia ser levado a concluir, numa primeira abordagem, que seria da Assembleia da República a competência exclusiva para, a tal propósito, legislar.

Todavia, sustenta-se no parecer, desde que o Governo, em tais domínios, não crie uma outra normatividade e se limite a repetir no essencial o que já consta de textos legais anteriores, emanados do órgão de soberania competente, deve entender-se não existir intromissão no sector de reserva legislativa do Parlamento.

É que esta reserva é de ordem substancial e não de ordem formal. O Governo, ainda em zona de reserva, é livre, desde que não toque no fundo, para dar novas vestes à legislação vigente e organicamente não viciada, coligindo-a, sistematizando-a ou simplesmente reproduzindo-a.

Por outro lado, prossegue o parecer que se vem acompanhando, embora só à Assembleia da República caiba cobrir legislativamente a área de direitos, liberdades e garantias, dispondo sobre as suas bases gerais e sobre os seus aspectos regulamentares essenciais, não lhe pertence já, e em monopólio, legislar sobre os mais ínfimos pormenores do tema que, por natureza, não constituirão nunca desvios ou inflexões às grandes linhas traçadas e à consequente regulamentaçãobasilar.

Depois de um exame de todo o articulado comparativo com...

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