Acórdão n.º 302/2006/T, de 12 de Junho de 2006

Acórdáo n.o 302/2006/T. Const. - Processo n.o 458/05. - Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional:

I- Relatório. -1-O Procurador-Geral da República requereu, ao abrigo do artigo 281.o,n.os 1, alínea a), e 2, alínea e), da Constituiçáo da República Portuguesa (CRP) e do artigo 51.o da Lei n.o 28/82, de 15 de Novembro [Lei do Tribunal Constitucional (LTC)], a apreciaçáo e declaraçáo, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade da norma constante do n.o 3 do artigo 51.o do Estatuto da Aposentaçáo, na redacçáo emergente da Lei n.o 1/2004, de 15 de Janeiro, por violaçáo do princípio da confiança, ínsito no princípio do Estado de direito democrático, consagrado no artigo 2.o da CRP.

Esta norma dispóe o seguinte:

Artigo 51.o

Regimes especiais

1- ......................................................

2- ......................................................

3 - Sem prejuízo de outros limites aplicáveis, a pensáo de aposentaçáo do subscritor sujeito ao regime do contrato individual de trabalho determina-se pela média mensal das remuneraçóes sujeitas a desconto auferidas nos últimos três anos, com exclusáo dos subsídios de férias e de Natal ou prestaçóes equivalentes.

4- (Anterior n.o 3.)

2 - Para fundamentar o pedido, o Procurador-Geral da República apresenta os seguintes argumentos:

A norma a que se reporta o presente pedido veio estabelecer um regime especial para a determinaçáo da pensáo de aposentaçáo do subscritor da Caixa Geral de Aposentaçóes sujeito ao regime do contrato individual de trabalho, mandando atender à média mensal das remuneraçóes sujeitas a desconto auferidas nos últimos três anos, com exclusáo dos subsídios de férias e de Natal ou prestaçóes equivalentes;

O estabelecimento deste regime especial envolve derrogaçáo das regras gerais vigentes em sede de determinaçáo da pensáo de aposentaçáo dos subscritores da Caixa Geral de Aposentaçóes, nomeadamente nos artigos 46.o e 48.o do Estatuto da Aposentaçáo, que consideram relevante a média mensal das remuneraçóes percebidas pelo subscritor nos dois últimos anos e que incluem os ordenados, salários, gratificaçóes, emolumentos, subsídio de férias, subsídio de Natal e outras retribuiçóes - previstas no n.o 1 do artigo 6.o -, «com excepçáo das que náo tiverem carácter permanente» (artigo 48.o do

Estatuto);

Este regime especial, inovatoriamente estabelecido, afecta, em termos claramente desfavoráveis, os direitos e expectativas dos subscritores sujeitos ao regime do contrato individual de trabalho ao ampliar o período temporal relevante para o cálculo da média mensal das remuneraçóes auferidas e, muito em particular, ao excluir de tal cômputo retribuiçóes periódicas e permanentes que sempre haviam sido consideradas relevantes para a determinaçáo da remuneraçáo mensal do interessado, degradando o valor da respectiva pensáo de aposentaçáo; Tal regime é imediatamente aplicável, nos termos regulados nos n.os 6, 7 e 8 do artigo 1.o da Lei n.o 1/2004, de 15 de Janeiro, independentemente da extensáo da carreira contributiva dos interessados;

Afectando, consequentemente, em termos gravosos e intoleráveis, as legítimas expectativas dos agentes sujeitos ao regime do contrato individual de trabalho, carecendo manifestamente de fundamento material a exclusáo da base de cálculo das pensóes de aposentaçáo de remuneraçóes periódicas - os subsídios de férias e de Natal - que sempre foram considerados, para todos os efeitos, como incluídas no conceito de «retri-

8550 buiçáo» ou remuneraçáo, relevando de pleno para o cálculo da pensáo;

E sendo certo que o trabalhador sujeito ao regime do contrato individual de trabalho com a Administraçáo Pública sempre foi realizando, ao longo de toda a carreira contributiva, descontos que incidiram sobre o valor daqueles «subsídios», criando-lhe a expectativa legítima e perfeitamente fundada de que, no momento da aposentaçáo, tais subsídios - como toda a remuneraçáo percebida regularmente e objecto de descontos - seriam relevantes para o cálculo da pensáo a que teria direito;

Ora, ao estabelecer tal alteraçáo inopinada nos mecanismos de cálculo da pensáo de aposentaçáo dos subscritores sujeitos ao regime de contrato individual de trabalho, degradando subs-tancialmente o valor da mesma, o legislador afectou, em termos intoleráveis, o princípio da confiança, ínsito no princípio do Estado de direito democrático, afirmado no artigo 2.o da CRP, levando a que a pensáo de aposentaçáo outorgada a tais subs-critores náo represente a exacta e plena contrapartida de todos os descontos efectuados pelo agente ao longo da sua carreira contributiva.

3 - Notificado, nos termos dos artigos 54.o e 55.o, n.o 3, da LTC, para se pronunciar sobre o pedido, o Presidente da Assembleia da República ofereceu o merecimento dos autos e juntou cópias do Diário da Assembleia da República que contêm os trabalhos preparatórios relativos ao diploma em que se integra a norma em apreciaçáo.

4 - Debatido o memorando apresentado pelo vice-presidente do Tribunal, nos termos do n.o 2 do artigo 39.o e do artigo 63.o da LTC, e fixada a orientaçáo sobre as questóes a resolver, cumpre formular a decisáo.

II - Fundamentaçáo. -5-É vasta a jurisprudência deste Tribunal sobre o princípio constitucional da protecçáo da confiança, que o requerente considera violado pela norma do n.o 3 do artigo 51.o do Estatuto da Aposentaçáo, na redacçáo da Lei n.o 1/2004, de 15 de Janeiro. Interessa recordar alguma desta jurisprudência, nomeadamente a que se relaciona com o domínio das pensóes de aposentaçáo ou realidades congéneres.

No Acórdáo n.o 99/99 (in Março de 1999, a pp. 4772 e seguintes, e Acórdáos do Tribunal Constitucional, 42.o vol., pp. 433 e segs.), o Tribunal Constitucional teve ensejo de se debruçar sobre a constitucionalidade da norma do n.o 5

do artigo 47.o do Estatuto da Aposentaçáo, introduzida pelo artigo 7.o da Lei n.o 75/93, de 20 de Dezembro, que veio determinar que, no cálculo da pensáo de aposentaçáo, sempre que a média das remuneraçóes exceda a remuneraçáo base legalmente fixada para o cargo de Primeiro-Ministro será a remuneraçáo mensal relevante reduzida até ao limite daquela.

Confrontando essa norma com o princípio constitucional da confiança, o Tribunal começou por recordar o que antes dissera no Acórdáo n.o 287/90, deixando afirmado o seguinte:

Como se escreveu no Acórdáo n.o 287/90 (publicado no Diário da República, 1.a série, de 20 de Fevereiro de 1991):

''Nesta matéria, a jurisprudência constante deste Tribunal tem-se pronunciado no sentido de que 'apenas uma retroactividade into-lerável, que afecte de forma inadmissível e arbitrária os direitos e expectativas legitimamente fundados dos cidadáos, viola o princípio da protecçáo da confiança, ínsito na ideia de Estado de direito demo-crático' (cf. o Acórdáo do Tribunal Constitucional n.o 11/83, de 12 de Outubro de 1982, in Acórdáos do Tribunal Constitucional, 1.o vol., pp. 11 e segs., no mesmo sentido se havia já pronunciado a Comissáo Constitucional, no Acórdáo n.o 463, de 13 de Janeiro de 1983, publicado no apêndice ao a p. 133, e no Boletim do Ministério da Justiça, n.o 314, p. 141, e se continuou a pronunciar o Tribunal Constitucional, designadamente através dos Acórdáos n.os 17/84 e 86/84, publicados nos Acórdáos do Tribunal Constitucional, 2.o e 4.o vols., pp. 375 e segs. e 81 e segs., respectivamente).''

E no mesmo Acórdáo n.o 287/90, transcrito depois no Acórdáo n.o 285/92, publicado no Agosto de 1992, salientou-se que, depois de se apurar se foram afectadas expectativas legitimamente fundadas, resta averiguar se essa afectaçáo é inadmissível, arbitrária ou demasiadamente onerosa.

A 'ideia geral de inadmissibilidade' deverá ser aferida pelo recurso a dois critérios:

'a) Afectaçáo de expectativas, em sentido desfavorável, será inadmissível, quando constitua uma mutaçáo da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas dela constantes náo possam contar; e ainda b) Quando náo for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalentes (deve recorrer-se, aqui, ao princípio da proporcionalidade, explicitamente consagrado, a propósito dos direitos, liberdades e garantias, no n.o 2 do artigo 18.o da Constituiçáo desde a 1.a revisáo).

Pelo primeiro critério, a afectaçáo de expectativas será extraordinariamente onerosa. Pelo segundo, que deve acrescer ao primeiro, essa onerosidade torna-se excessiva, inadmissível ou intolerável, porque injustificada ou arbitrária.'

[. . .] Ora, no caso sub iudice, compreende-se que a introduçáo pelo legislador de um limite máximo da remuneraçáo relevante para o cálculo da pensáo de aposentaçáo afecte expectativas dos destinatários da prescriçáo legal. É facto que náo havia razáo específica para os destinatários anteciparem aquela mutaçáo da ordem jurídica (a imposiçáo daquele limite naquele momento).

Resta, porém, saber se tais expectativas eram legítimas, no sentido de merecerem a tutela do direito, ou se o legislador acautelou a possibilidade de formaçáo de tais expectativas, advertindo os destinatários da impossibilidade de se fixar um dado regime da aposentaçáo antes de certo momento.

Na verdade, a impossibilidade de previsáo de uma mudança só frustraria expectativas legítimas dos destinatários da norma em causa se estes náo devessem razoavelmente contar com a possibilidade da mudança, designadamente, por o legislador os ter advertido do momento em que se fixa o regime da aposentaçáo. Ora, o artigo 43.o do Estatuto da Aposentaçáo incorpora, neste sentido, uma previsáo genérica de possibilidade de mudança de regimes, ao determinar que o regime da aposentaçáo se fixa com base na lei em vigor e na situaçáo existente à data em que se verifiquem os pressupostos que dáo origem à aposentaçáo [. . .] E, por outro lado, este regime foi sendo, ao longo dos anos, sucessivamente alterado (umas vezes em sentido favorável, outras em sentido desfavorável ao interesse do...

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