Acórdão n.º 564/2007, de 13 de Fevereiro de 2008

Acórdáo n. 564/2007

Processo n. 230/07

Acordam na 2ª Secçáo do Tribunal Constitucional

I - Relatório

1 - Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relaçáo do Porto, em que é recorrente Fernando dos Santos Teixeira e recorrido Jorge Manuel de Sousa Barbosa e Outros, foi interposto recurso de fiscalizaçáo concreta de constitucionalidade, ao abrigo da alínea b) do n. 1 do artigo 70. da lei do Tribunal Constitucional (LTC), do acórdáo daquele Tribunal de

19.12.2006, visando a apreciaçáo da constitucionalidade dos artigos 186. , n. 3, e 189., n. 2, alínea b), do Código da Insolvência e da Recuperaçáo de Empresas, aprovado pelo Decreto -Lei n. 53/2004, de 18 de Março, alterado pelo Decreto -Lei n. 200/2004, de 18 de Agosto.

2 - A decisáo recorrida surge na sequência de processo de insolvência intentado, no Tribunal Judicial de Santo Tirso, por Jorge Manuel Sousa Barbosa contra Drogaria Teixeira & Souto, Lda., no qual foi declarada a insolvência desta sociedade e, por sentença de 09.04.2006, decidido:

- qualificar como culposa a insolvência de "Drogaria Teixeira e Souto, Lda.", e considerar afectado por tal qualificaçáo o seu administrador Fernando dos Santos Teixeira (...);

- decretar a inabilitaçáo do identificado administrador por um período de quatro anos, sendo assistido por curador a nomear, bem como a sua inibiçáo, por igual período, para o exercício do comércio, bem como para a ocupaçáo de qualquer cargo de titular de órgáo de sociedade comer-cial ou civil, associaçáo ou fundaçáo privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa

.

Inconformado com o decidido, Fernando dos Santos Teixeira recorreu para o Tribunal da Relaçáo do Porto, que confirmou a decisáo da primeira instância por acórdáo de 19.12.2006.

Neste acórdáo, na parte que agora releva, pode ler -se o seguinte: «(...) Por último, pretende o agravante que sáo inconstitucionais os artigos 186, n. 3 e 189, n. 2 do CIRE: ao fixar (o 1.) uma presunçáo de culpa grave "iuris tantum", com a imposiçáo do ónus da prova do contrário à outra parte, conduz a que, se os administradores náo conseguirem provar que náo tiveram culpa na situaçáo de insolvência, poderáo ser sujeitos às consequências do artigo 189, n. 2 e elas afectam de forma grave e directa direitos, liberdades e garantias consagrados na Constituiçáo da República Portuguesa, sendo reserva da Assembleia da República legislar sobre essa matéria (artigo 165, 1, b)), mas podendo o Governo invadir essa área mediante autorizaçáo daquela (artigo 198, 1, b) - da CRP, tal como o anteriormente citado). Ora, o Dec. lei 53/2004 foi precedido de uma lei de autorizaçáo legislativa mas em lado algum desta se autorizou o Governo a constranger os direitos, liberdades e garantias nos termos em que o fez o artigo 186, n. 3 do CIRE, nomeadamente criando uma presunçáo contra o administrador da insolvente, pelo que foram ultrapassados os poderes legislativos conferidos pela citada lei de autorizaçáo legislativa e foram violados os mais elementares princípios e direitos constitucionalmente protegidos, nomeadamente o direito ao trabalho, à livre escolha de uma profissáo, à iniciativa económica privada e o direito à propriedade privada.

Salvo o devido respeito, também neste ponto carece o agravante de razáo.

O que se vê da lei n. 39/2003, de 22 de Agosto, que autorizou o Governo a legislar sobre a insolvência de pessoas singulares e colectivas é que a Assembleia conferiu os aludidos poderes legislativos ao Governo

de forma pormenorizada e exaustiva, designadamente em matéria das consequências decorrentes do processo especial de insolvência face à (in)capacidade do insolvente ou seus administradores (n 3, a) do artigo 1), tendo autorizado concretamente a previsáo do incidente de qualificaçáo da insolvência como fortuita ou culposa, dado a noçáo geral de insolvência culposa, determinado o conteúdo da inibiçáo e especificado a declaraçáo de inabilitaçáo dos insolventes ou dos seus administradores decorrentes da insolvência culposa (artigo 2. n. 5, 6, 7 e 8), náo tendo de ser expressamente autorizada a mençáo de presunçóes, que sáo meios de prova de factos (aliás náo sáo propriamente meios de prova, mas meios lógicos ou mentais, enfim, produto de regras de experiência), previstos na lei, náo privativos do processo de insolvência, pelo que náo há a apontada a inconstitucionalidade orgânica, sendo ainda certo que de harmonia com o artigo 165, n. 2 da CRP as leis de autorizaçáo legislativa o que devem definir é "o objecto, o sentido a extensáo e a direcçáo da autorizaçáo".

Inconstitucionalidade material igualmente inexiste em qualquer das normas contidas nas disposiçóes legais em referência, como nos parece evidente, náo sendo o direito ao trabalho e os demais invocados pelo Agravante absolutos nem exclusivos do Recorrente (o direito "à retribuiçáo do trabalho", por exemplo, também tem assento constitucional, como resulta do artigo 59, n. 1, al. a) da lei Fundamental...).

III - Decisáo

Pelo exposto, acorda -se em negar provimento ao agravo.

Custas pelo agravante.»

3 - É deste aresto que o recorrente interpóe o presente recurso, concluindo da seguinte forma as respectivas alegaçóes:

1ª - Os artigos 186° n° 3 e 189° n° 2 alínea b) do D. L. n. 200/2004 de 18/08, Código da Insolvência e da Recuperaçáo de Empresas (CIRE) estabelecem uma cominaçáo de inabilitaçáo do administrador cuja conduta culposa tenha contribuído ou determinado a insolvência da empresa, presumindo a sua culpa caso náo haja requerido a insolvência ou náo haja elaborado as contas anuais, nos prazos legais, sujeitando as mesmas à fiscalizaçáo e depósito na Conservatória.

2ª - Tais normas prevêem a inabilitaçáo, em paralelo ou simultâneo com a inibiçáo, como uma verdadeira e própria incapacidade jurídica que o Código Civil tipifica como modalidades, a menoridade (artigo 122°) a interdiçáo (artigo 138°) e a inabilitaçáo (artigo 152°)

3ª - A capacidade jurídica definida no artigo 67° do Código Civil encontra consagraçáo no artigo 26° da Constituiçáo da República Portuguesa como direito fundamental em termos de a todos ser reconhecido o direito à capacidade civil cujas restriçóes só podem efectuar -se nos casos e termos previstos na lei.

4ª - Os motivos da restriçáo devem ser pertinentes e relevantes sob o ponto de vista da capacidade da pessoa e náo pode servir de pena ou efeito de pena.

5 - A restriçáo dos direitos fundamentais, como a capacidade civil, devem obedecer aos requisitos de substância resultantes do artigo 18° da CRP, ou seja, que vise salvaguardar outro direito ou interesse constitucionalmente protegido, que seja exigida por essa salvaguarda, que seja apta para o efeito e se limite à medida necessária para alcançar esse objectivo e que a restriçáo náo aniquile o direito em causa atingindo o conteúdo essencial do respectivo preceito.

6 - Deve a ainda a restriçáo respeitar requisitos formais, nomeadamente, o da lei restritiva náo ter efeito retroactivo

7 - A inabilitaçáo prevista no artigo 152° do Código Civil, como a interdiçáo, assenta na demonstraçáo da incapacidade do cidadáo de reger o seu património, ou regê -lo convenientemente, pelo que o que se pretende prevenir com uma tal limitaçáo à capacidade jurídica do cidadáo é o seu próprio interesse.

8° - Ao invés, a inabilitaçáo prevista no artigo 189° n° 2 alínea b) do CIRE visa, primariamente, o interesse dos credores, e náo o interesse do próprio inabilitando, pelo que uma tal restriçáo da capacidade civil náo é "pertinente" e "relevante" sob o ponto de vista da capacidade da pessoa e náo visa salvaguardar outro direito ou interesse constitucionalmente protegido.

9° - Na inabilitaçáo a que se refere o artigo 189° do CIRE, além do interesse protegido náo ser o do próprio inabilitando mas sim dos credores da insolvente, nada justifica uma tal restriçáo do direito fundamental na óptica de que a mesma é inócua nos efeitos que produz no processo de insolvência ou mesmo nos próprios interesses dos credores.

10° - Tal inabilitaçáo assume, pois, carácter ou natureza sancionatória, sendo que a Constituiçáo da República Portuguesa - artigo 26° - náo

5626 consente que uma restriçáo (como a inabilitaçáo) de um direito fundamental (como a capacidade jurídica) tenha um efeito de pena.

11° - O artigo 12° do D. L n° 53/2004 de 18/03 que aprovou o CIRE prevê normas transitórias prescrevendo que o CPEREF continua a aplicar-se aos processos de recuperaçáo da empresa e de falência pendentes à data da entrada em vigor do CIRE pelo que este último diploma só se aplica aos processos instaurados após a sua entrada em vigor.

12° - As normas contidas nos artigos 186° e 189° n° 2 do CIRE sáo normas substantivas na medida em que definem as relaçóes concretas das pessoas em sociedade, prescrevendo os pressupostos para a imputaçáo da culpa na insolvência e as suas consequências - inabilitaçáo e inibiçáo - de restriçáo de exercício de direitos, pelo que a elas se aplica o artigo 12° do Código Civil, ou seja, a regra da náo retroactividade da lei nova a factos passados anteriormente a 15 de Setembro de 2004 (veja -se artigo 13° do D. L. n° 53/2004 de 18/03)

13° - No domínio da lei antiga (CPEREF) náo existia qualquer norma que sancionasse o incumprimento das obrigaçóes aqui em causa com a inabilitaçáo do administrador, pelo que o decretamento desta com fundamento em factos ocorridos em momento anterior à lei que a prevê, constitui uma clamorosa violaçáo do artigo 26° da CRP

14° - O que conduz ao decretamento da inabilitaçáo é um juízo de culpabilidade na insolvência que recai sobre a pessoa do administrador, culpa que se acha pelo recurso a presunçóes "iuris tantum" como as que vêm reflectidas no citado artigo 186° n° 3° do CIRE.

15ª - O legislador ordinário, em matéria de restriçóes ao direito fundamental como a capacidade civil náo podia instituir um regime que, na forma (recurso a presunçóes) e na substância (tipificaçáo de situaçóes que nada têm a ver com a capacidade jurídica), facilita o...

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