Acórdão n.º 430/91, de 07 de Dezembro de 1991

Acórdão n.º 430/91 Processo n.º 314/91 1 - O representante do Ministério Público junto deste Tribunal requereu em 3 de Junho, ao abrigo do n.º 3 do artigo 281.º da Constituição da República Portuguesa e do artigo 82.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, que o Tribunal Constitucional apreciasse e declarasse, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade das normas dos artigos 10.º, n.º 1, e 13.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 14/84, de 11 de Janeiro.

Baseou o pedido em que tais normas já haviam sido julgadas inconstitucionais em (mais de) três casos concretos: primeiro, no Acórdão n.º 489/89, de 13 de Julho (da 1.' Secção), publicado no Diário da República, 2.' série, de 1 de Fevereiro de 1990; e recentemente nos Acórdãos n.os 155/91, 156/91, 157/91, 158/91 e 160/91, de 24 de Abril, e 174/91, 175/91, 182/91, 183/91 e 185/91, de 7 de Maio (todos da 2.' Secção), ainda por publicar à data do requerimento.

Ouvido, nos termos do artigo 54.º da citada Lei n.º 28/82, o Primeiro-Ministro limitou-se a oferecer o merecimento dos autos.

Cumpredecidir.

2 - A propósito da fiscalização da constitucionalidade, atribui o n.º 3 do artigo 281.º da Constituição ao Tribunal Constitucional competência para apreciar e declarar, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade de qualquer norma, desde que ela tenha sido julgada inconstitucional em três casos concretos. E, regulamentando esse preceito, dispõe o artigo 82.º da Lei n.º 28/82 que, sempre que a mesma norma tenha sido julgada inconstitucional em três casos concretos, pode o Tribunal Constitucional, por iniciativa de qualquer dos seus juízes ou do Ministério Público, promover a organização de um processo com as cópias das correspondentes decisões, o qual é concluso ao Presidente, seguindo-se os termos do processo de fiscalização abstracta sucessiva da constitucionalidade previstos na lei.

A declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral não é, porém, automática. Isto é: o julgamento da inconstitucionalidade de uma norma em três casos concretos não leva necessariamente à declaração da inconstitucionalidade dessa norma com força obrigatória geral.

Isso mesmo se afirmou logo no acórdão que apreciou o primeiro pedido feito ao Tribunal Constitucional com base no n.º 2 do artigo 281.º da Constituição (correspondente ao actual n.º 3), ou seja, o Acórdão n.º 93/84, de 31 de Julho (no Diário da República, 1.' série, de 16 de Novembro de 1984, e nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 4.º vol., p. 153).

E tem sido nesse sentido a jurisprudência do Tribunal, como se pode ver, v. g., do Acórdão n.º 204/86, de 11 de Junho (no Diário da República, 1.' série, de 27 de Junho de 1986, e nos citados Acórdãos, 7.º vol., p. 253), e, muito recentemente, do Acórdão n.º 400/91, de 30 de Outubro (no processo n.º 226/90).

Idêntica é a posição da doutrina.

Diz, com efeito, o Prof. Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, t. II, 2.' ed., revista, 1983, n.º 108, II: O pedido leva consigo um juízo sobre a suficiência da última decisão concreta para que se passe à declaração com força obrigatória geral, mas é um novo processo de fiscalização que vem então a abrir-se e uma nova decisão do Tribunal que tem de se formar.

Ensina, por sua vez, o Prof. J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 5.' ed., totalmente refundida e aumentada, 1991, parte IV, capítulo 29, padrão VII, 2.º, DI: Note-se, porém, que este processo de declaração da inconstitucionalidade com base em controlo incidental não é automático. Em termos processuais, trata-se de um novo processo de fiscalização abstracta sucessiva, o que aponta para um nova apreciação da questão pelo TC (cf. o artigo 82.º da Lei do TribunalConstitucional).

Há, assim, que apreciar de novo a questão da inconstitucionalidade das normas que são objecto do pedido.

É o que se passa a fazer.

3 - O Decreto-Lei n.º 15/84, de 11 de Janeiro, alterou o regime de julgamento e punição do crime de emissão de cheque sem provisão e, como se lê no respectivo sumário oficial, 'institui a medida administrativa de restrição do uso de cheque pelos responsáveis pela emissão de cheques sem provisão'. O capítulo I é subordinado ao título 'Do processo pelo crime de emissão de cheque sem provisão' e o capítulo II ao título 'Da medida de restrição ao uso decheque'.

Dispõe o artigo 10.º - o primeiro do capítulo II -, nos seus n.os 1 e 2: A medida de restrição ao uso de cheque a que o presente capítulo se refere é uma providência de natureza administrativa que envolve a proibição às pessoas a quem for aplicada de movimentar por meio de cheques as contas de depósito de que sejam titulares em quaisquer instituições de crédito [n.º 1].

A medida de restrição ao uso de cheque que obriga as pessoas a quem for aplicada a devolver às instituições de crédito todos os módulos de cheques ainda em seu poder ou dos seus mandatários e às instituições de crédito a não lhes facultar cheques para a movimentação das suas contas de depósito, sem prejuízo do disposto no número seguinte [n.º 2].

Nos termos do n.º 1 do artigo 11.º, a medida de restrição ao uso de cheque é aplicável: a) Quando no período de três meses a mesma entidade saque três ou mais cheques que, apresentados a pagamento no prazo legal, não forem pagos por falta de provisão, ainda que sacados sobre instituições de crédito distintas; b) Quando, tendo sido emitido um ou mais cheques que não tenham sido pagos por falta de provisão, irregularidade de preenchimento ou de saque, se prove que o titular da conta, pela utilização indevida do cheque, põe em causa o espírito de confiança que deve presidir à sua circulação.

Segundo o n.º 1 do artigo 12.º, a medida de restrição ao uso de cheque tem a duração mínima de seis meses e máxima de três anos.

Quanto à competência para aplicar a medida, preceitua o n.º 1 do artigo 13.º: Compete ao Banco de Portugal, por intermédio do seu conselho de administração, decidir sobre a aplicação da medida de restrição ao uso de cheque.

Dessa decisão há, porém, recurso contencioso nos termos gerais de direito (n.º 7 do artigo 15.º).

Dispõe finalmente o artigo 17.º: 1 - Quem, estando abrangido pela medida de restrição ao uso de cheque, emitir cheque com provisão fora dos casos previstos no n.º 3 do artigo 10.º, ou no prazo de oito dias após a notificação não devolver às instituições de crédito os módulos de cheques em seu poder, em conformidade com o n.º 2 do artigo 10.º, incorre na pena prevista para o crime de desobediência.

2 - Quem, tendo-lhe sido aplicada a presente medida, emitir cheque sem provisão incorre na pena prevista para o crime de desobediência qualificada, sem prejuízo da responsabilidade pelo crime de emissão de cheque sem provisão.

Está em causa, como se disse, a inconstitucionalidade das normas dos artigos 10.º, n.º 1, e 13.º, n.º 1.

E, na verdade, elas foram julgadas inconstitucionais, v. g., nos Acórdãos n.os 489/89, 155/91 e 160/91 - os dois últimos também já publicados no Diário da República, 2.' série, de 3 e 4 de Setembro de 1991, respectivamente -, com fundamento em que só à Assembleia da República, ou ao Governo, devidamente autorizado, competia legislar na matéria, isto é, criando a medida de restrição ao uso de cheque, e nem o artigo 3.º da Lei n.º 12/83, de 24 de Agosto, nem o artigo 1.º da Lei n.º 27/83, de 8 de Setembro, invocados no Decreto-Lei n.º 15/84, habilitavam o Governo a instituir essa medida.

Importa examinar esses dois pontos.

4 - A questão da constitucionalidade das normas do Decreto-Lei n.º 14/84 que se referem à medida de restrição ao uso de cheque tem sido relacionada com a natureza de tal medida.

Assim, o Supremo Tribunal Administrativo (1.' Secção) tem-se orientado no sentido da não inconstitucionalidade dessas normas, por entender que a restrição ao uso de cheque é uma 'medida de carácter administrativo'. A afirmação consta do Acórdão de 12 de Dezembro de 1985 (no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 352, pp. 244), onde se diz mais que a referida medida nem é uma medida de segurança nem se pode identificar com as sanções aplicadas quando se está em presença de uma contra-ordenação, de uma contravenção ou de um crime.

O Supremo Tribunal de Justiça, em Acórdão da Secção Criminal de 5 de Abril de 1989 (na Colectânea de Jurisprudência, ano XIV, 1989, t. 2, p. 8), decidiu também que tais normas não são inconstitucionais, já que 'o legislador configurou tal medida como de natureza administrativa e não penal, sujeitando a sua aplicação aos princípios de controlo que regulam o exercício do poder administrativosancionatório'.

Diversamente, o Tribunal Constitucional pronunciou-se pela inconstitucionalidade no citado Acórdão n.º 489/89, onde, depois de se afastar a natureza de 'medida de polícia', se conclui que se trata de uma 'medida sancionatória', sendo irrelevante tomar posição na questão de saber 'se a tipologia descrita se integrará no direito penal, por a respectiva sanção ter a natureza de uma verdadeira pena, ou se, ao invés, se pretendeu criar uma contra-ordenação, estando em causa sanções ordenativas ou coimas', pois, 'tanto numa como na outra hipótese, se está perante matéria incluída na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República', só podendo, portanto, o Governo legislar sobre ela se para o efeito estivesse devidamente autorizado [alíneas c) e d) do n.º 1 do artigo 168.º da Constituição], o que não se verifica, porque nem o artigo 3.º da Lei n.º 12/83 nem o artigo 1.º da Lei n.º 27/83, invocados no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 14/84, dão cobertura às normas questionadas.

Comoresolver? 5 - Recapitulemos antes de mais o essencial do regime da medida de restrição ao uso de cheque, tal como ele está delineado no capítulo II do Decreto-Lei n.º 14/84: a) Pressuposto da sua aplicação é, por um lado, a emissão por parte da mesma entidade, no período de três meses, de três ou mais cheques que, apresentados a pagamento no prazo legal, não tenham sido pagos por falta de provisão [alínea a) do n.º 1 do...

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